Pode o IBGE receber tudo das teles?

Coluna semanal de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo.

publicado em

28 de abril de 2020

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MP não é melhor caminho para obrigar a entrega de dados de clientes

Dentre tantas polêmicas da semana passada, houve também a questão da medida provisória que obriga as empresas de telefonia a entregar para o IBGE “a relação dos nomes, números de telefone e endereços dos seus consumidores, pessoas físicas e jurídicas”.

O tema causou alvoroço. Entregar mais de 200 milhões de números para um órgão do governo federal não parece ser das melhores decisões de política pública.

A controvérsia foi tão grande que a ministra Rosa Weber concedeu liminar suspendendo sua aplicação. Além disso, a MP recebeu 227 emendas no Congresso. Em outras palavras, 227 congressistas acharam que alguma coisa precisa mudar ali.

Isso em si demonstra que uma MP não é o caminho para tratar de tema tão importante. Ela possui efeitos imediatos. Se os dados forem já entregues, não há como “desentregá-los”. Essa ação (e o dano potencial dela) é irreversível e põe em situação vulnerável todas as pessoas que têm um celular no Brasil.

Além disso, a MP ignora os princípios básicos de proteção de dados, que foram aprovados pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em 2018.

Por exemplo, nem a medida provisória nem a instrução normativa que a regulou trataram da segurança dos dados. Como serão armazenados? Haverá criptografia? Há controle específico de quem acessa? Quem não quiser ter seu número na base do IBGE poderás se opor? Qual o canal e o prazo para fazer isso? Todos esses requisitos são exigidos pela LGPD e foram ignorados.

Foi ignorado também o princípio mais importante: a necessidade e proporcionalidade. Qual é o tamanho da amostra de pessoas que a realização da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) demanda?

A Pnad de 2018, por exemplo, trabalhou com 211 mil domicílios. Por que raios então estão sendo pedidos 200 milhões de números?

Um caminho que seria legalmente (e constitucionalmente) aceitável seria limitar a demanda ao número exato de pessoas necessárias para a pesquisa ter validade estatística.

As teles, nesse caso, só entregariam esse número específico. E poderiam adotar o critério de seleção aleatória do IBGE, sem a necessidade de compartilhar nenhum dado além do necessário.

Há também mais soluções. Não seria preciso nem sequer passar números para o IBGE para realizar a Pnad. Basta adotar um sistema de números anonimizados, atendendo aos critérios da pesquisa, em que o IBGE pode entrar em contato telefônico direto com os cidadãos e cidadãs de que precisa, sem que o número dessas pessoas seja revelado.

Seria similar a quem liga para um motorista da Uber ou do Rappi (e vice-versa) e consegue falar com a pessoa sem que os números de cada um sejam revelados. A ligação é intermediada por um sistema desenhado para isso.

Vale ressaltar aqui que o problema não é o IBGE. A presidente do IBGE é um dos melhores quadros do governo federal, e acredito que as intenções por trás da medida provisória sejam as melhores.

O problema foi de forma, e não de conteúdo. Se o IBGE ajustar o texto da MP atendendo aos requisitos acima e outros aplicáveis, sua demanda torna-se não só legítima mas constitucional.

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