Está na hora de fazer a Marie Kondo na sua vida digital

Coluna de Carlos Affonso no UOL

publicado em

30 de janeiro de 2019

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Marie Kondo é uma japonesa que ensina sobre a alegria que é arrumar a casa, dobrar as roupas retinhas e se desapegar do que não cabe mais (em você ou no seu armário). Autora de livros traduzidos em mais de trinta países, ela agora está com uma série no Netflix (chamada “Ordem na Casa”), na qual aplica o seu método KonMari de organização oriental em casas de famílias americanas.

É mais um episódio do choque de cultura. O fascínio pelo estilo de vida e pela cosmovisão japonesa parece entrar em rota de colisão com os amontoados de roupas, papéis e cabos USB que viraram as nossas vidas. Não é fácil aceitar algumas recomendações sugeridas pela autora, mas entender um pouco das suas inspirações pode ajudar a entender melhor o seu método e até mesmo aplicá-lo para a sua vida digital.

Um dos principais estranhamentos que o espectador ocidental experimenta logo de cara é a conexão com a autora busca fazer com a casa que será objeto da arrumação. Não raramente Marie se ajoelha no tapete da sala e pede permissão à casa para que ela possa começar o processo de organização. Sim, ela pede permissão à casa e não aos seus habitantes.

Tratar as coisas como entidades é uma das lições do Xintoísmo, espiritualidade própria da cultura japonesa, com raízes milenares e amplamente difundida na sociedade nipônica. O Shinto (“caminho dos deuses”) apresenta uma versão anímica do mundo ao nosso redor, propondo uma conexão com a ordem existente na natureza.

Você não precisa ir muito longe para ver traços do Xintoísmo em vários outros shows japoneses disponíveis na Netflix. No anime “Mushishi”, por exemplo, um andarilho viaja entre vilas do Japão antigo procurando resolver situações que parecem sobrenaturais, mas que na verdade são o fruto involuntário da interação entre pessoas e entidades da natureza, os mushi. Onde uma menina vai começa a chover? Uma outra perdeu a voz depois de escutar o som de uma concha? Culpa do mushi!

Diferente dos fantasmas, que pertencem a um outro plano e que aqui só estão a contragosto ou para nos atazanar, os mushi se assemelham ao conceito xintoísta de Kami, entidades espirituais que podem adotar formas humanas ou mais abstratas, residindo em coisas ou em elementos da natureza. Santuários xintoístas usam cordas de palha (chamadas de shimenawa) para demarcar lugares sagrados. Quando enroladas em troncos de árvores centenárias, elas indicam que ali vive uma entidade e que a sua derrubada trará graves consequências.

Na série “Midnight Diner”, o dono de um restaurante em Shinjuku que só abre à meia-noite se dedica a ouvir as histórias de seus clientes e a preparar os seus pratos favoritos, caso tenha os ingredientes. Muitas vezes são esses ingredientes e o preparo dos pratos que se tornam os protagonistas do episódio, dando centralidade à comida enquanto se desenrolam dramas humanos.

Uma consequência natural de se tratar as coisas como entidades é a possibilidade de se avaliar as relações que mantemos com elas. Essa relação entre pessoas e coisas aparece a todo instante nos episódios de “Ordem na Casa” e está no coração dos livros de Marie Kondo.

Uma das recomendações principais da autora é buscar na casa aqueles objetos que despertam alegria. Logo no primeiro episódio, Marie abraça uma peça de roupa e ensina que ela deve despertar um sentimento bom. Ela (a autora) faz até um barulhinho fofo para assinalar que a conquista foi destravada.

Para aquilo que não mais desperta alegria, o jeito é mesmo abraçar, agradecer e mandar embora. Teve muita gente na Internet querendo aplicar o método KonMari nos relacionamentos interpessoais, especialmente com ex-namorados ou parentes chatos: você abraça, agradece por tudo e manda a pessoa embora da sua vida.

Vale fazer o exercício: o que desperta alegria na sua vida digital? E, ao contrário, o que apenas toma o seu tempo e ocupa espaço? A impressão de capacidade de armazenamento infinita trazida pela nuvem tem seu preço. Muita gente deixa para fazer uma limpeza geral nos seus arquivos, aplicativos e programas apenas quando não há mais espaço livre.

Mas será que precisamos esperar tanto para arrumar a casa? No que diz respeito à nossa vida digital, existe um outro fator a se levar em consideração com o acúmulo de programas e de aplicativos: a coleta constante de dados de pessoais por aplicações que não usamos mais.

Se você usa o Facebook, dê uma olhadinha na opção Configurações > Aplicativos e Sites. Ali você vai encontrar todas as aplicações que você um dia usou na rede social (como jogos ou testes), além dos sites que você se logou usando a sua conta do Facebook. Mesmo que você tenha usado essa aplicação apenas uma vez, sabe-se lá quando, ela ainda tem a permissão que você deu lá atrás para a coleta e uso de dados. Depois do escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica o Facebook passou a restringir solicitações adicionais por apps que estão inoperantes, mas eles não são automaticamente removidos. Gaste 30 segundos do seu dia e vá se impressionar com a presença de apps que você nem se lembrava mais de um dia ter usado. Está na hora de abraçá-los, agradecer por eles terem mostrado o resultado de um teste idiota ou permitido o acesso a um site que você não usa mais e então clicar no botão “remover”.

Um usual momento de epifania nos episódios da série “Ordem em Casa” acontece quando Marie pede os moradores da casa que esvaziem os seus armários e reúnam todas as roupas em uma pilha única. Visualizar a quantidade do que se tem ajuda no exercício do desapego. O mesmo vale para diversos momentos de nossa vida digital. Será que você realmente precisa de todas essas abas abertas no seu navegador? Você vai realmente ler esse artigo que está nessa aba que permanece aberta a semana toda? Reclamar que o computador está lento para navegar na Internet quando o browser está com vinte abas abertas é o mesmo que protestar sobre a dificuldade em achar seus pertences em um quarto desarrumado. A culpa não é do computador e nem do quarto.

É claro que tem gente protestando, dizendo que se entende na sua bagunça e que é feliz assim. Eu mesmo acho que uma casa arrumada demais é sinal de falha de caráter: a pessoa está escondendo algo porque a ordem natural das coisas sempre acomoda uma pitada de caos.

De qualquer forma, o método KonMari não vai gerar os mesmos resultados para todas as pessoas. A graça do desafio proposto pela autora é fazer com que cada um possa se sentir bem e aproveitar mais o ambiente em que se vive. Como passamos cada vez mais tempo conectados, aplicar uma dose de organização na nossa vida digital não custa nada.

E você está ouvindo isso de uma pessoa que tinha em 2018, segundo o Jornal O Globo, 160.481 (cento e sessenta mil, quatrocentas e oitenta e uma) mensagens não lidas nas suas caixas postais. Hoje trabalhamos com algo entre dez e vinte mensagens, mas ainda sei como tudo aquilo se acumulou. Dizia que era culpa da caixa de spam ou das infinitas listas de e-mails, mas no fundo todos sabemos que a culpa é do mushi.

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