Lei aprovada é contra o GovTech

Coluna semanal de Ronaldo Lemos publicada na Folha de São Paulo

publicado em

30 de março de 2021

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O Congresso Nacional tem aprovado uma série de leis que vêm sendo chamadas de “Leis do Governo Eletrônico”. Sua ideia original é mais que urgente: facilitar a vida dos cidadãos reduzindo a burocracia e digitalizando a relação com o poder público. São leis que promovem o chamado GovTech, a transformação necessária e inevitável dos entes públicos em plataformas digitais.

No entanto, na realidade, vários dos textos aprovados deveriam ser rebatizados de “Leis Contra o Governo Eletrônico”. Um exemplo é a lei 14.063, de 2020, que supostamente avançaria em uma questão fundamental: ampliar o uso de assinaturas digitais, permitindo que o cidadão possa acessar o poder público de casa, pelo celular, praticando todos os atos necessários. Sem papel e sem a necessidade de deslocamento físico.

O texto original da lei era bom. Surgiu de um trabalho bem-feito realizado no Ministério da Economia e tomou por base o modelo utilizado pela União Europeia. No entanto, ao chegar ao Congresso, o texto foi totalmente desvirtuado. Em vez de ampliar o uso de assinaturas digitais em várias modalidades, como na Europa, a lei-jaboticaba-venosa brasileira ampliou privilégios exclusivos para uma única modalidade de assinatura: a do vergonhoso certificado digital.

O certificado digital é aquela modalidade de assinatura que exige que o cidadão tenha de pagar até R$ 350 por ano para ser utilizado. É uma tecnologia velha e inflexível. É vendida como mais segura, mas não é. Apenas 5 milhões de pessoas no Brasil (2,5% da população) têm um certificado digital. A maior parte dos demais 97,5% da população jamais terá dinheiro para comprar um.

O Congresso Nacional, em vez de ficar do lado dos 97,5% da população, decidiu ficar do lado daqueles que vendem certificados digitais para 2,5%. Com essa mudança inacreditável, a lei foi aprovada. Só que a Presidência da República, sendo fiel ao seu texto original, vetou essas mudanças.

No entanto, o Congresso vai decidir nesta semana se mantém os vetos presidenciais, que favorecem 97,5% dos brasileiros, ou se derruba esses vetos, favorecendo os fornecedores de certificados para os 2,5%. E pasme: a base do governo no Congresso está se mobilizando para derrubar os vetos. O Brasil realmente não é para principiantes.

O que está em jogo é muito sério. Em que Brasil queremos viver? Um em que o cidadão precisa pagar até R$ 350 para acessar serviços públicos digitais? Ou um em que os serviços públicos digitais são acessíveis para todos, usam tecnologia modernas, atuais, seguras e gratuitas, como blockchain e outras, implementadas pelas chamadas assinaturas avançadas?

Em tempos de pandemia, o Congresso deveria fazer a sua parte. Deveria ser mesmo a casa “do povo” e representar a maioria absoluta da população, abrindo caminho para que não só uma minúscula minoria rica possa ter acesso completo aos serviços públicos digitais.

Em jogo está a própria ideia de GovTech. Para que o país seja capaz de se desenvolver, precisa ser capaz de prover serviços públicos de qualidade para toda a sua população. Em um país em que o Bolsa Família vale R$ 186,83, é chocante querer obrigar os cidadãos a pagar até o dobro disso para ter acesso a vários serviços públicos essenciais.

READER

Já era O tempo em que o certificado digital podia ser considerado a única tecnologia segura

Já é A existência de várias modalidades de assinaturas digitais modernas, seguras e acessíveis

Já vem O Brasil conseguindo a façanha de usar a tecnologia para recriar a burocracia no mundo digital

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