Apple e o paradoxo da privacidade

Coluna semanal de Ronaldo Lemos publicada na Folha de São Paulo

publicado em

10 de agosto de 2021

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A quem pertende a galeria de fotos do seu celular, à Apple ou a você?

Em junho de 2019, a Apple colocou um outdoor gigante em um prédio de Las Vegas com os seguintes dizeres: “What Happens on Your iPhone, Stays on Your iPhone” (o que acontece no seu iPhone fica no seu iPhone).

O anúncio indicava um compromisso da empresa com a proteção da privacidade e dos dados dos seus clientes. A julgar pelos acontecimentos dos últimos dias, a empresa talvez fizesse melhor comprando um outdoor com o poema-clichê de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança”.

Pois bem, a Apple mudou no que diz respeito ao seu compromisso com a privacidade. Na semana passada, a big tech anunciou um bizarro projeto que, na superfície, teria por objetivo combater material contendo abuso sexual contra crianças (o que a empresa batizou de CSAM). A empresa criou um sistema que irá monitorar, escanear e analisar de forma permanente todas as fotos salvas nos iPhones, nos iPads e nos Macs. Se o sistema detectar fotos suspeitas, a empresa notificará automaticamente as autoridades.

O combate a conteúdo com abuso infantil é essencial e deve ser implacável. Nesse sentido, a intenção da empresa pode até ser boa. Só que, ao fazer isso, ela destrói por completo a linha do que é espaço digital privado e o que é espaço digital público. Afinal, a quem pertence a galeria de fotos do seu celular, à Apple ou a você?

O sistema da Apple amplia a impressão de que os donos dos produtos da empresa não são realmente donos. São uma espécie de “hóspedes” da empresa, sujeitos a regras de conduta, presentes ou futuras, infinitamente mutáveis e, sobretudo, à vigilância permanente.

A medida gerou furor entre pesquisadores de segurança da informação e entidades de defesa da privacidade. Por exemplo, a organização Electronic Frontier Foundation afirmou: “É impossível construir um sistema de escaneamento que seja usado somente para imagens com conteúdo sexual. Como consequência, mesmo um sistema bem-intencionado abrirá a porta para abusos maiores”.

O Centro de Democracia e Tecnologia (CDT), por sua vez, disse que o sistema “marca um desvio significativo da Apple com relação à questão da privacidade e protocolos de segurança”.

É uma pena. A empresa vinha dando passos no sentido da dar maior controle para seus usuários com relação aos seus dados e à inviolabilidade dos seus produtos. Nesse sentido, a medida tomada agora é paradoxal até com o marketing da empresa.

Vale lembrar que os iPhones vêm sendo vítimas de programas de espionagem como o software Pegasus. Esses programas —sem a necessidade de nenhum clique— permitem que atacantes invadam completamente o celular da vítima, conferindo inclusive acesso a seus dados e mensagens. Escancarar ainda mais as brechas do aparelho, em vez de fechar as existentes, acaba funcionado como mais um tijolo nesse paradoxo.

A empresa dificilmente vai conseguir servir a dois objetivos simultaneamente. De um lado, criar um produto seguro, algo cada vez mais desejado em face a ciberataques crescentes. E, de outro, criar sistemas de vigilância e controle sobre seus próprios produtos. São carros tentando viajar em direção oposta na mesma via. O resultado é de novo Camões: “Mudam-se os tempos, muda-se a confiança”.

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