É preciso parar de falar ‘usuário’ de internet

Coluna semanal de Ronaldo Lemos publicada na Folha de São Paulo

publicado em

14 de setembro de 2021

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Usuado poderia se referir a quem usa, mas também é usado pela tecnologia

Por alguma razão, a obra de Benjamin Bratton, professor da Universidade de San Diego, na Califórnia, me escapou completamente. Que vacilo! Seu livro de 2015 chamado “The Stack” (“A Pilha”) é uma das leituras mais interessantes para entender o mundo atual (não por acaso, seu subtítulo é “software e soberania”).

Bratton cria uma boa metáfora para explicar a estrutura dos tempos atuais. A “pilha” do título diz respeito a “empilhamento”. Na visão dele, o mundo de hoje é construído por meio de empilhamentos acidentais e planejados de várias formas de infraestrutura, software, conteúdo e redes de governança.

Nas camadas profundas, temos elementos físicos como os minerais que compõem os microprocessadores. Um pouco acima os cabos submarinos, satélites e redes de fibras ópticas. Depois, dispositivos como celulares e computadores. O software, protocolos e aplicativos. O conteúdo que trafega e é trafegado. Os usuários que utilizam tudo isso. As leis que regulam os fluxos da informação desses usuários, bem como as práticas e costumes de cada comunidade política, e assim por diante.

Esse grande “empilhamento” de coisas diferentes resulta na estrutura do mundo contemporâneo. Quem controla uma parte da pilha pode ter influência que se projeta para muito além da sua camada específica (por isso o tema “soberania” é subtítulo do livro).

Bratton resume essas camadas em seis elementos: a Terra, a Nuvem, a Cidade, os Endereços, as Interfaces e os Usuários. É um jeito elegante de pensar o estado atual das coisas. Particularmente, só tenho uma divergência com Bratton. Acho que seu conceito de “usuário” é ultrapassado. Aliás, essa é uma palavra que deveríamos abandonar. Tornou-se enganosa.

O termo usuário dá a impressão de alguém que usa alguma coisa. No sentido original e romântico da palavra, é quem se senta na frente do computador para fazer algo. Só que no mundo de hoje não é o usuário que usa a tecnologia, mas é utilizado por ela (e pelo “stack”). A palavra ainda passa a ideia de comando ou agência, mas o usuário atual não tem isso. Quando usa a tecnologia, é também usado por ela.

Por isso precisamos de uma palavra nova, talvez um neologismo em inglês como “usered”, mistura de “user” com “used”. Ou, em português, “usuado”, para se referir a quem usa, mas também é usado. Em Portugal, que usa a palavra “utilizador”, seria mais preciso falar em “utilizado”.

Isso porque, no mundo de hoje, em que a tecnologia, sensores e câmeras estão em toda parte coletando dados, é muito mais fácil ser utilizado do que utilizar. Não importa mais se você está logado ou não. Você não é só usuário do seu smartphone, mas está sendo utilizado por ele. O “usuário” não tem acesso às tecnologias embarcadas nele, apenas às interfaces na sua superfície. Os aparelhos que usamos conectam-se a diversas camadas da “pilha” e fazem monitoramento ambiental permanente.

O “usuário” é apenas um dos elementos desse ambiente. Ele é monitorado, não é quem monitora. Por isso é preciso reescrever a popular frase “I fight for the user” (“Eu luto pelo usuário”). O mais correto hoje seria “Eu luto pelo usuado”.

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