África tem muito a ensinar sobre inovação

Leia a coluna da semana de Ronaldo Lemos para Folha de S.Paulo

publicado em

19 de agosto de 2022

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Arrasada por uma guerra civil, Moçambique está em pleno processo de reconquista do tempo perdido

Quando se pensa no continente africano nem sempre é comum pensar em inovação. Isso é um erro. Primeiro por conta dos aspectos tradicionais e da diversidade do continente, que sempre foram propícios para experimentação e criatividade.

Recentemente, também pelo fato de haver uma vitalidade enorme apontando para inovações tecnológicas e sociais no continente. Não é por acaso que se fala cada vez mais em afrofuturismo ou de Wakanda.

Moçambique pode facilmente ilustrar esses conceitos. A história do país é cheia de desafios. A começar porque só se tornou independente em 1975. Logo após a independência mergulhou em uma guerra civil, que acabou somente em 1992.

A guerra destruiu mais de mil escolas do país, além de arrasar recursos e infraestrutura, incluindo flora e fauna. Até os elefantes de Moçambique são especialmente agressivos, traumatizados pelo conflito.

Por exemplo, há um ecossistema de inovação e criatividade em curso. A começar pela questão dos pagamentos digitais. Há mais de dez anos é possível transferir dinheiro pelo celular, sem precisar de conta bancária. Mais do que isso, é possível sacar dinheiro nos caixas eletrônicos sem usar cartão, apenas com mensagens de texto. Ou ainda, pagar qualquer compra com o celular, também sem cartão.

Enquanto o Pix no Brasil tem pouco tempo, Moçambique tem um sistema de pagamentos digitais há bem mais tempo e com mais funcionalidades que as implementadas até agora pelo Pix.

Além disso, há uma cena crescente de startups. Por exemplo, o Biscate.com. Trata-se de um site e aplicativo de celular (acessível também por mensagens de texto) que permite aos 14 milhões de trabalhadores informais do país encontrar trabalho eventual.

Em Moçambique há cerca de 1 milhão de empregos formais, insuficientes para ocupar a força de trabalho. Depois do sucesso inicial, o Biscate está agora investindo em organizar cadeias produtivas mais complexas: conectar trabalhadores com habilidades distintas, criando laços mais sólidos entre demanda e oferta.

A indústria cultural também avança. O X-Hub, por exemplo, é uma iniciativa que permite a músicos, produtores audiovisuais e outros profissionais criativos alavancarem seu trabalho, inclusive internacionalmente.

Funcionam com capacitação, internacionalização (traduzem tudo do artista para o português, inglês e francês). Oferecem estúdio de gravação e produção de vídeo. E criam uma rede capaz de profissionalizar a produção local.

Como sempre gosto de lembrar, a cultura é a porta de entrada para a economia do conhecimento. E o X-Hub aposta exatamente nisso.

Mais ao norte do país o Parque Nacional da Gorongosa criou um programa de mestrado aberto a pesquisadores do mundo todo. É uma rara junção de parque nacional, com pesquisa e programa social de apoio às comunidades do entorno. Cheguei inclusive a participar da maratona promovida pelo parque com as comunidades vizinhas, com 2.500 participantes.

Enquanto corria com esforço máximo, fui ultrapassado facilmente por um corredor local que corria de costas. Isso serviu para mim de metáfora.

No continente africano há muita criatividade, ousadia e formas diferentes de fazer as coisas. Mesmo correndo de costas, com tantos desafios, o horizonte é cada vez mais de ultrapassagens.

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