Elis Regina mostra como recriação digital de pessoas mortas veio para ficar
Leia a coluna da semana de Carlos Affonso Souza para Uol Tilt.
publicado em
11 de julho de 2023
categorias
tema
Não é de se estranhar que a internet tenha parado para ver a propaganda da nova kombi. O vídeo, que celebra os 70 anos da Volkswagen no Brasil, traz um dueto entre Elis Regina, falecida em 1982, e sua filha Maria Rita. Muita gente ficou emocionada – e assustada – com a recriação digital da cantora.
A propaganda desperta muitas questões sobre o futuro das criações digitais de pessoas mortas, desde a possibilidade de os herdeiros contratarem esse uso comercial da imagem e da voz alheia até uma reflexão sobre o impacto que essas montagens geram no público.
Filhos podem contratar a recriação digital dos pais?
Eu sei, isso é muito Black Mirror, mas pode acreditar que essas perguntas já fazem parte das aulas de Direito. Vamos lá:
– O Código Civil entrou em vigor em 2003 e foi pensando basicamente no final dos anos 70 do século passado;
– Em seu artigo 20, a lei diz que a imagem de uma pessoa pode ser usada por terceiros, se isso for autorizado, para fazer prova em um processo ou para manter a ordem pública (art. 20).
– Fora isso, esse uso pode ser proibido e gera indenização “se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.
O que nos interessa aqui é a parte da autorização. Enquanto a pessoa estiver viva, cabe a ela autorizar o uso da sua imagem. Mas o que acontece quando depois do seu falecimento? O parágrafo único do artigo 20 diz que “em se tratando de morto (…) são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.
O artigo foca na legitimidade dos herdeiros em proteger a imagem e a honra dos falecidos contra usos indevidos, mas também serve de suporte para que herdeiros possam contratar a recriação digital da pessoa falecida (mesmo que para fins comerciais).
Visto pelo outro lado, se a Volkswagen resolvesse fazer uma propaganda recriando Elis Regina sem buscar autorização dos herdeiros, ela estaria exposta a uma ação indenizatória nos moldes do artigo 20.
Caminhando pelo Vale da Estranheza
Um outro ponto que chamou atenção na propaganda foi a diversidade de reações ao vídeo. Se por um lado Janja chorou, outras tantas pessoas sentiram um desconforto ao ver Elis recriada e cantando com Maria Rita. Esse sentimento é estudado há bastante tempo e atende pelo nome de “vale da estranheza”.
O conceito se origina na interface entre tecnologia e psicologia. Foi introduzido pela primeira vez pelo professor de robótica japonês Masahiro Mori em 1970. Ele observou que, enquanto a semelhança de um robô com um ser humano aumenta, o sentimento de familiaridade e empatia das pessoas também aumenta, mas só até certo ponto.
No entanto, Mori identificou um momento de inflexão peculiar nessa trajetória ascendente. Quando um robô parece quase que exatamente com um humano, mas ainda mantém características ligeiramente não humanas, o sentimento de familiaridade de repente se transforma em desconforto e até repulsa. Este ponto de virada é o que Mori chamou de “vale da estranheza”.
Por exemplo, um robô com aparência claramente mecânica, como o R2-D2 de Star Wars, é frequentemente percebido como amigável e agradável. Ele se parece mais com uma lata de lixo com pernas do que com gente de verdade. No entanto, um robô que se parece quase exatamente com um humano, mas que se move de forma ligeiramente artificial ou tem um olhar vazio, pode provocar sentimentos de medo e repulsa. Este é o “vale” que Mori descreveu: um ponto em que a tentativa de imitar a humanidade se torna contraproducente e a aceitação despenca.
No entanto, é importante notar que a existência e a extensão do “vale da estranheza” são assuntos de debate. Alguns estudos sugerem que a reação varia consideravelmente entre diferentes pessoas e culturas. Mesmo assim, o conceito do “vale da estranheza” oferece uma estrutura útil para pensar sobre nossas reações complexas e às vezes contraditórias à tecnologia que imita aspectos humanos.
Embora o “vale da estranheza” tenha suas raízes na robótica, ele foi estendido a outros domínios, incluindo animação por computador e inteligência artificial. Seja uma personagem de videogame com movimentos corporais estranhamente fluidos ou um assistente de voz que fala com um tom quase humano, mas não exatamente correto, essas criações provocam os mesmos sentimentos de desconforto.
A estranheza nas telas do cinema
A migração desse conceito para o domínio das reconstruções digitais de pessoas tem tido um impacto notável na forma como consumimos entretenimento. Nos últimos anos, vimos uma série de filmes que usam computação gráfica para ressuscitar atores já falecidos ou ainda rejuvenescer ou envelhecer pessoas.
Um dos atores principais da franquia “Velozes e Furiosos”, Paul Walker faleceu tragicamente durante as filmagens do sétimo filme. Em vez de reformular o papel ou reescrever o roteiro, os produtores optaram por uma solução digital, usando efeitos especiais e dublês (os irmãos de Walker) para completar suas cenas. Embora a tecnologia usada tenha sido impressionante, a presença digital de Walker causou desconforto para alguns.
Em “Rogue One: Uma História Star Wars” surgem outros exemplos. A Lucasfilm usou a tecnologia CGI para recriar o personagem de Grand Moff Tarkin, interpretado pelo falecido Peter Cushing. Embora a recriação fosse notavelmente realista, muitos espectadores expressaram sentimentos de estranhamento. Essa reação dividida foi mais evidente em importante cena do filme com a personagem Leia, vivida por Carrie Fischer, criada digitalmente para retratar a aparência da atriz nos anos 70.
Estes casos levantam questões éticas, jurídicas e estéticas sobre a reconstrução digital de pessoas. Mostrando a relevância do debate, o ator Robin Williams, falecido em 2014, estabeleceu um testamento proibindo explicitamente o uso de sua imagem em qualquer mídia por 25 anos após sua morte.
Recriação digital na palma da mão
Recentemente, a barreira de entrada para a reconstrução digital caiu drasticamente. Agora, os consumidores têm acesso a aplicativos que lhes permitem fazer suas próprias reconstruções digitais a um custo relativamente baixo. Aplicativos como o Zao, por exemplo, permitem que os usuários substituam os rostos de atores famosos em cenas de filmes por seus próprios rostos.
Essas aplicações democratizam o acesso à tecnologia de reconstrução digital, tornando-a acessível a qualquer pessoa com um smartphone. No entanto, eles também agravam o “vale da estranheza”, pois agora estamos vendo não apenas celebridades, mas também amigos, familiares e nós mesmos em contextos que nos são estranhos e desconcertantes.
Outras aplicações levam essa ideia ainda mais longe por usar redes neurais para transformar fotos comuns em obras de arte surreais que distorcem a realidade ou completar a imagem recortada de uma capa de disco. O uso disseminado dessas tecnologias pode resultar em um novo tipo de “vale da estranheza”, já que se torna cada vez mais difícil discernir o real do que é digitalmente reconstituído.
O futuro chegou de kombi
A discussão traz um dilema central da nossa época: a linha entre a realidade e a representação digital é cada vez mais tênue. Além disso, à medida que essas tecnologias continuam a se desenvolver e a se disseminar, é provável que elas desafiem nossas noções de autenticidade e identidade.
Ao nos engajarmos com essas questões, talvez possamos superar o “vale da estranheza” e, ao fazê-lo, descobrir formas de compreender a nós mesmos e o nosso lugar num mundo cada vez mais digital. O futuro já chegou e, como questiona Chico Barney, quem diria que ele chegou de kombi.