Suprema Corte dos EUA mandou recado sobre liberdade de expressão

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

8 de julho de 2024

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Leis aprovadas na Flórida e no Texas restringem as atividades de moderação feitas pelas plataformas digitais

A Suprema Corte dos Estados Unidos publicou duas decisões muito aguardadas sobre a moderação nas redes sociais ao avaliar duas leis, aprovadas na Flórida e no Texas, que tentam impedir que as plataformas restrinjam conteúdos e contas que elas entendam ter violado seus termos de uso.

Ambas as leis estaduais foram provocadas por legisladores republicanos na escalada dos atos de 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio e o banimento de Donald Trump de redes sociais como Facebook e Twitter.

No final das contas, a Suprema Corte mandou o caso de volta para os tribunais de origem, entendendo que as cortes não analisaram devidamente o tema da liberdade de expressão. Ao fazer isso, mandou vários recados que podem ajudar a entender o que vem pela frente nos EUA.

A lei da Flórida procura impedir a “desplataformização” intencional de políticos ou veículos de notícias, e teve seus efeitos suspensos por uma decisão do tribunal federal do 11º circuito.

Já a lei do Texas proíbe as redes sociais de censurar usuários com base em seus “pontos de vista” e foi mantida por uma decisão do tribunal federal do 5º circuito.

Essa disparidade de decisões pressionou a Suprema Corte a analisar os casos.

O que disse a Suprema Corte

A Suprema Corte decidiu mandar os casos de volta aos tribunais de origem por 9 a 0. Isso pode parecer uma vitória para os defensores das leis, já que elas não foram declaradas inconstitucionais de cara, mas ela mandou alguns sinais de que especialmente a lei do Texas não passará no teste caso venha a analisar o mérito da questão.

A decisão por 9-0 pode parecer que temos uma corte unificada em torno do tema da liberdade de expressão nas redes sociais. Nada poderia ser mais distante da realidade. De forma geral, a Corte entendeu que os tribunais estaduais não avaliaram adequadamente o tema da liberdade de expressão, sobretudo quando ele vai além do feed de notícias do Facebook ou das recomendações do YouTube.

A decisão foi escrita pela ministra Elena Kagan, indicada para pelo presidente Barack Obama, mas diversos outros ministros escreveram opiniões em separado, destacando partes ou argumentos que lhes pareceram mais relevantes.

E eles pareceram especialmente interessados em saber como as duas leis impactam o funcionamento das redes sociais e demais plataformas digitais como um todo, incluindo as ferramentas de chat privado e outras funcionalidades.

Moderação de conteúdo é uma forma de expressão

Um ponto em comum entre os ministros foi a noção de a moderação de conteúdo é, a princípio, um exercício de liberdade de expressão, estando assim protegida pela primeira emenda da Constituição dos EUA.

E aqui vale explicar para o leitor brasileiro porque a porta de entrada desse tema no direito norte-americano é meio contraintuitiva.

A Suprema Corte não analisou se as atividades de moderação de conteúdo poderiam ser enquadradas como sendo censura.

Ao contrário, a preocupação era saber se o governo, ao impor restrições à moderação de conteúdo, não estaria restringindo a maneira pela qual empresas e demais agentes privados organizam as suas atividades e criam plataformas para que seus usuários se expressem.

“Um governo não pode interferir no discurso de atores privados para promover sua própria visão de equilíbrio ideológico.”
– Kagan

De forma contundente, e de olho na situação atual das plataformas digitais, a ministra afirmou que:

“Em um mundo melhor, haveria menos desigualdades nas oportunidades de expressão; e o governo pode tomar muitas medidas para nos aproximar desse mundo. Mas ele não pode proibir o discurso para melhorar ou equilibrar o mercado das ideias. No espectro dos perigos para a livre expressão, poucos são maiores do que permitir que o governo mude o discurso de atores privados para alcançar sua própria concepção de um nirvana discursivo.”

Corte não curtiu a lei do Texas

A maioria dos ministros foi crítica à lei do Texas, que impede que as empresas moderem conteúdos que exprimam “pontos de vista”.

Segundo Kagan, “a lei impede exatamente o tipo de julgamentos editoriais que este tribunal já considerou merecedores de proteção pela primeira emenda.”

Dessa forma, ficou assentado que publicar, selecionar, filtrar e recomendar conteúdos em redes sociais é uma forma de expressão por parte das empresas de tecnologia.

Nós estamos muito acostumados a ver o tema da liberdade de expressão como sendo um direito que os usuários possuem e que poderia gerar uma ação contra atividades de moderação das plataformas, que estariam censurando discurso indevidamente.

Nos EUA, não só esse tipo de ação é bloqueado por uma lei federal (seção 230 da Lei da Decência das Comunicações), que dá imunidade para as plataformas moderarem conteúdo (isso não existe no Brasil, por sinal), como os tribunais entendem que a gestão dos ambientes online é uma forma de expressão e um é direito das empresas.

Kagan afirmou que “é improvável [que a lei do Texas] resista ao escrutínio da primeira emenda”.

Ela qualificou a decisão do tribunal que manteve a lei como “um grave mal-entendido” sobre a proteção da liberdade de expressão através da primeira emenda.

IA entrou no chat

O que acontece quando a moderação de conteúdo passa a ser feita cada vez mais por algoritmos e de modo automatizado?

A grande maioria da curadoria e moderação não é feita por seres humanos, mas por algoritmos que priorizam conteúdo com base em fatores que as plataformas não revelaram e talvez nem saibam, lembra o ministro Samuel Alito, que pergunta:

“São tais decisões igualmente protegidas pela liberdade de expressão como as decisões tomadas por humanos? Deveríamos ao menos pensar sobre isso?”

Para a ministra Amy Coney Barrett, indicada por Trump, algoritmos programados para priorizar ou remover conteúdos podem ser encarados como ferramentas que implementam decisões humanas, e assim estariam debaixo da proteção à liberdade de expressão.

Mas o que acontece quando a empresa responsável pela plataforma treina uma IA a partir de um modelo de linguagem para determinar o que é discurso de ódio?

Nesses casos a conexão entre a decisão humana e a atuação da ferramenta seria mais tênue, gerando consequências para a análise das leis da Flórida e do Texas, segundo a ministra.

Um recado para o TikTok

Ninguém esperava por essa, mas o voto da ministra Barrett trouxe também um intrigante recado que pode ser aplicado ao TikTok, que enfrenta uma batalha jurídica nos EUA contra uma lei que obriga a sua venda —caso contrário, geraria o banimento da plataforma do país.

Barrett, na parte final do seu voto, afirma que uma pessoa jurídica, que é composta por pessoas físicas que possuem direito à liberdade de expressão, também possui liberdade de expressão ela mesma. Mas diz que esse direito, coberto pela primeira emenda, não vale para “os estrangeiros e as empresas localizadas no exterior.”

A vinculação aos argumentos do TikTok de que a lei estaria afetando a liberdade de expressão de americanos que usam a plataforma, ou mesmo da empresa, ganha corpo quando a ministra afirma que:

“A propriedade estrangeira de uma plataforma de mídia social e o controle sobre suas decisões de moderação de conteúdo podem afetar se as leis que anulam essas decisões desencadeiam uma análise da primeira emenda. E se a liderança corporativa da plataforma no exterior tomar as decisões de política sobre os pontos de vista e o conteúdo que a plataforma disseminará? Importaria que a corporação empregasse americanos para desenvolver e implementar algoritmos de moderação de conteúdo se o fizessem sob a direção de executivos estrangeiros? Os tribunais podem precisar enfrentar essas questões ao aplicar a primeira emenda a certas plataformas.”

As decisões sobre as leis da Flórida e do Texas fecham a tampa do ano judiciário para a Suprema Corte, que nesse período decidiu alguns casos que tratam direta ou indiretamente da liberdade de expressão na internet.

A tendência é global. Quanto mais conectados estamos, mais os casos que definem os limites sobre o exercício dos direitos e a delimitação das responsabilidades nas redes chegam aos tribunais superiores pelo mundo afora, criando um diálogo a partir das diferentes soluções.

No Brasil, o STF indicou que está pronto para decidir sobre o tema da responsabilidade civil das plataformas digitais ainda esse ano.

Ao mesmo tempo, as diversas decisões do ministro Alexandre de Moraes incitam o debate sobre os limites da liberdade de expressão nas redes.

Enquanto se aguarda a definição sobre o novo lote de casos que a Corte norte-americana vai assumir para o próximo período, não faltam oportunidades para o debate continuar do lado de cá.

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