Seis pontos sobre ‘A Crise da Narração’, de Byung-Chul Han

publicado em

16 de outubro de 2024

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O projeto “Seis pontos” tem como propósito apresentar uma obra, seja um livro, filme ou relatório de pesquisa. Nosso objetivo é sintetizar alguns de seus principais argumentos, sem substituir o acesso à obra original. Queremos, em suma, oferecer um mapa que motive o leitor ou a leitora a explorar o caminho por si mesmo.

sobre o autor da obra

Byung-Chul Han

nasceu na Coreia do Sul em 1959. Ao se mudar para a Alemanha nos anos 1980, estudou literatura e filosofia. Defendeu sua tese de doutorado em 1994 e vem se dedicando a temas como ética, antropologia cultural, a sociedade digital, o capitalismo, o poder e a cultura contemporânea. É autor de diversas obras, entre elas “A Sociedade do Cansaço”, sua obra mais famosa, em que explora a pressão pelo desempenho e suas consequências para o indivíduo, “A Agonia de Eros”, “No Enxame”, “Não-Coisas”. Seus livros são publicados no Brasil pela Editora Vozes.

6 pontos

Como uma sociedade cada vez mais informada pode perder a capacidade de narrar?


Essa é a questão central do livro de Byung-Chul Han. O autor reflete sobre o fim da habilidade humana de contar histórias com profundidade, bem como atribui este fato ao acúmulo de informações e conteúdos digitais. Esse excesso, para Han, se reflete em um corpo social vazio de sentido e incapaz de se expressar de forma significativa. Vivemos em uma época “pós-narrativa”. Um smartphone não permite a narração, pois permite apenas uma troca acelerada de informações.

 

Somos nós que temos que dar sentido à nossa própria narrativa


numa busca metafísica. Han afirma que “devido à falta de orientação externa, devido à falta de ancoragem narrativa do ser, é do próprio eu que tem que emanar a força para contrair o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte, transformando-o em uma unidade viva que permeia ou engloba todos os eventos e acontecimentos”. Contudo, se estamos entregues, por horas, ao feed, aos stories, às selfies, ao algoritmo, às apostas online, quando tomamos as rédea de nossa própria história narrada (interna e externamente)? As plataformas são feitas com o intuito aditivo, não narrativo – ao contrário de nossa memória e de como lembramos nossa história. Além disso, a plataforma tem pretensão à completude, ao registro total da vida. Enquanto isso, nossas recordações são necessariamente falhas, imperfeitas, imprecisas, sendo justamente essa dubiedade que enriquece as narrativas.

 

A escassez de conexões comunitárias seria o principal desencadeador dessa falta de sentido na modernidade


Essa escassez de conexões se evidencia nas redes sociais, que nos permitem ficar permanentemente confortáveis. Afinal, um like não precisa de narrativa nenhuma. Embora a internet tenha trazido a possibilidade de agilizar e multiplicar o contato humano, este é breve e intangível. Para Han, a efemeridade das redes sociais alimenta a obsessão pelo novo, o que estaria debilitando a sociedade contemporânea. A curta temporalidade “evoca uma sensação de impermanência que cria uma sutil compulsão para se comunicar mais”. Dessa forma, o vício no contato imediato seria resultado de um processo de hiper informatização iniciado pela popularização do ambiente digital. A durabilidade das relações interpessoais perdeu espaço para a impermanente e passageira conexão virtual. As informações que desabam sobre nós fragmentam o tempo, que passa a ser reduzido a “uma estreita faixa de coisas atuais”.

 

Quase no fim do texto, o autor define o contorno daquilo que dá nome ao livro:


“Na época do storytelling como storyselling, narração e anúncio são indistinguíveis. Nisso consiste a crise da narrativa”. Dessa forma, o sistema econômico atual também ocuparia um importante papel na morte da capacidade narrativa. A característica do capitalismo moderno de absorção dos hábitos para convertê-los em produtos, transformou a narração em um objeto de consumo. Para o autor, o storytelling, como uma forma mercantilizada de contar histórias, roubou a essência humana da habilidade discursiva. Em diálogo evidente com vários de seus outros livros, como “A Sociedade do Cansaço”, existe uma forte crítica ao neoliberalismo e à sua narrativa de desempenho e meritocracia, que “faz com que cada um seja um empreendedor de si mesmo. Todos estão em competição contra todos. A narrativa do desempenho não cria a coesão social, não cria um Nós. Pelo contrário, ela desmantela tanto a solidariedade quanto a empatia”. A promoção da ideia de autorrealização teria como consequência o isolamento das pessoas, dificultando a formação de narrativas comunitárias.

 

Apesar da perspectiva ser distinta, o tema não é inédito no ITS


Ronaldo Lemos dedicou uma coluna em 2021 sobre o que chamou de “A Grande Ruptura”. Vale a pena ler. A Grande Ruptura seria “uma nova forma de representação e comunicação para a qual o cânone é irrelevante ou não tem significado textual, apenas instrumental. Os sinais da Grande Ruptura estão em toda parte. Tanto na cultura mainstream como, principalmente, nas culturas de nicho (ou melhor, de meganichos, já que milhões de pessoas participam deles)”. Outra característica da Grande Ruptura é que “seu objetivo final não é transmitir informação, mas modular experiências imediatas, especialmente estados emocionais; é muito mais experiência do que conteúdo”. Tais conteúdos acessam diretamente “sentimento de ansiedade e variações (medo, pânico, apreensão, stress, tensão, horror) ou contraposições (relaxamento, distração, meditação, cura, dissipação, luta permanente contra ataques de pânico)”. Ou seja, não há aqui qualquer privilégio da narrativa. Existe uma informação emocional intensa e passageira, que nada conta, que nada explica. A crise da narração e a grande ruptura se dão pela sobreposição do sentimento efêmero ao cânone narrado.

 

Viver é narrar


Assim começa o último parágrafo, síntese do livro de Byung-Chul Han. Ele afirma que “a narração tem o poder de um novo começo. Toda ação que transforma o mundo pressupõe uma narração”. Somos uma sociedade que narra. Crianças que começam a falar começam também a exercitar o dom de contar histórias. Não à toa, a autobiografia de Gabriel García Márquez se chama “Viver para Contar”. Onde/quando a narrativa está em crise, Byung-Chul Han vê perigo. Em essência, segundo o autor, falta narrarmos histórias uns aos outros porque, em vez disso, “nos comunicamos excessivamente. Postamos, compartilhamos e curtimos”. Sua mensagem final é um convite para retomarmos as conversas em torno das fogueiras – na sua falta, servem as mesas dos bares, dos restaurantes, das salas de aula e das casas dos amigos.

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