Seis pontos sobre ‘Nada a esconder’, filme dirigido por Fred Cavayé

publicado em

1 de novembro de 2024

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O projeto “Seis pontos” tem como propósito apresentar uma obra, seja um livro, filme ou relatório de pesquisa. Nosso objetivo é sintetizar alguns de seus principais argumentos, sem substituir o acesso à obra original. Queremos, em suma, oferecer um mapa que motive o leitor ou a leitora a explorar o caminho por si mesmo.

sobre a obra

'Nada a esconder'

é uma comédia dramática francesa de 2018, dirigida por Fred Cavayé e baseada no original italiano de dois anos antes. A história fez tanto sucesso que conta com versões em muitos outros países, mas aqui vamos falar da versão francesa que está na Netflix. O enredo é simples: um grupo de amigos de longa data decide se encontrar para jantar e acaba se envolvendo em um jogo sobre os limites da privacidade. A trama instiga o espectador a refletir sobre questões aparentemente comuns, mas de grande profundidade. Segue, aqui, nossos 6 pontos sobre o filme.

6 pontos

O enredo gira em torno de sete pessoas, sendo três casais heterossexuais e um homem desacompanhado


O grupo combina, em forma de brincadeira, que, durante o jantar, todas as mensagens e ligações recebidas deverão ser visualizadas e escutadas por todos ali presentes. O jogo (não à toa o nome no original francês é “Le Jeu”) se inicia após uma piada contada por Ben, o personagem que está sozinho, que desencadeia a seguinte provocação: você tem algo a esconder? Assim como os sete amigos, muitos de nós responderiam à pergunta com um veemente “não” ou até usariam de algumas expressões populares bastante conhecidas: “minha vida é um livro aberto” ou “quem não deve, não teme”. Contudo, será que é realmente tão simples cedermos a nossa privacidade?

 

O filme nos faz refletir sobre uma questão crucial: a importância do direito à privacidade na vida cotidiana


Essa garantia, tão relevante para a contemporaneidade, foi inicialmente estudada por Samuel Warren e Louis Brandeis em 1890, como o denominado direito de ser deixado em paz, ou o direito de estar só. Os autores defendiam a criação de uma proteção jurídica contra o que chamavam de “curiosidade lasciva”. Considerando o advento da fotografia, a preocupação principal de Warren e Brandeis era preservar a privacidade para evitar a publicação de fotos e informações pessoais pela imprensa. Observa-se que, já naquela época, existia o desafio de resguardar a intimidade em meio ao avanço tecnológico. O filme de Cavayé, neste contexto, nos apresenta um pequeno retrato do que pode ocorrer quando subestimamos a relevância deste direito.

 

No início do jogo, os personagens renunciam temporariamente a sua intimidade para que os seus amigos tenham acesso às suas informações pessoais


É fácil presumir que, ao aderirem à brincadeira, eles não dimensionaram as possíveis consequências desta decisão e, como resultado, certas situações desagradáveis ocorrem. Alguns participantes, em razão disso, pedem para desistir do desafio, mas, em benefício da dramaturgia, seu pedido é negado. Ao trazermos esta situação para o contexto do estudo da proteção de dados pessoais, em oposição ao que ocorre em Nada a esconder, a nossa legislação permite a revogação do consentimento a qualquer tempo mediante manifestação expressa. Quando observamos esta parte da narrativa, entendemos a importância prática da presença deste dispositivo na lei geral de proteção de dados do Brasil (LGPD, Lei 13.709/18).   

 

Outro aspecto de destaque é: quem protege a privacidade de quem mandou a mensagem direcionada aos celulares de cada um dos participantes do jogo?


Segundo a LGPD, o consentimento para o tratamento de dados “deverá ser fornecido por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação de vontade do titular”. No caso do filme, uma das regras do jogo era que o remetente da mensagem não poderia saber sobre a exposição a que estava sujeito. Ou seja, se não havia sequer ciência sobre a brincadeira, que dirá autorização para participar dela. Acerca disso, importa destacar que o consentimento é a manifestação livre e informada, sendo, este último aspecto, crucial para a compreensão de que não há anuência sem que os envolvidos tenham consciência dos fatos. Nesse contexto, diversas situações potencialmente vexatórias podem ocorrer  sem que os envolvidos tenham qualquer conhecimento. Aliás, sem dar spoiler, há uma cena particularmente tocante em que um personagem ausente do jantar busca aconselhamento e faz confissões sem saber que está sendo ouvido. A privacidade, fica evidente, não é sobre o certo ou errado, ter ou não o que esconder, mas também decidir com quem, como e quando compartilhar seus sentimentos – em respeito a si e aos demais. Se depois de ver o filme você achar que sabe que cena é essa, escreve para a gente! 🙂     

 

Além disso, ao assistirmos Nada a esconder, outra questão se impõe: por que alguém se submeteria a um desafio que implica em uma exposição tão grande?


A resposta para esta pergunta pode ser rapidamente encontrada no filme: há uma motivação afetiva que gera a troca de informações; eles criam o desafio para provarem que são pessoas verdadeiras e confiáveis aos seus amigos e parceiros. Vejamos, entretanto, que fora da ficção, é um pouco mais difícil encontrar a resposta para uma pergunta como essa. Afinal, por qual razão nós divulgamos tanto a nossa intimidade quando nos propomos a postar fotos, vídeos, localização, informações familiares e profissionais em redes sociais? O que nos motiva a ceder uma parte considerável da nossa privacidade na internet? Por que programas do tipo “Big Brother” fazem tanto sucesso? Para responder à pergunta, muitas obras já foram escritas. Sugerimos a leitura dos clássicos “A Sociedade do Espetáculo” (Guy Debord) e “A Cultura do Narcisismo” (Christopher Lasch). Para uma abordagem mais recente e com outro enfoque, vale ler “Geração Ansiosa” (Jonathan Haidt).

 

Nada a esconder, por fim, nos leva a refletir sobre as incoerências da vida; sobre como conviver em sociedade é, muitas vezes, ocultar quem realmente somos


O filme evidencia a nossa ambivalência e nos mostra que ninguém está livre de suas próprias contradições. Ainda que você não se identifique com nenhum dos personagens, não há como passar ileso pelo filme. Durante uma hora e meia, o enredo nos desafia a deixarmos um pouco o binômio do “bem e do mal” ou “certo e errado” para observarmos a complexidade do nosso comportamento. Isso porque, quando aceitamos que temos algo a esconder, concluímos que não somos tão perfeitos quanto pensávamos. Nesse viés, a obra é um mergulho na nossa própria humanidade, pois, ainda que se almeje a transparência como princípio, na realidade, todos precisamos fazer escolhas sobre o que exibir e o que conservar guardado. 

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