Falsificação Suprema: de Roma ao Supremo Tribunal do Delírio

Coluna de Ronaldo Lemos na Folha de S.Paulo.

publicado em

10 de dezembro de 2024

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Voto de Dias Toffoli para Marco Civil da Internet cita leis de outros países aprovadas pelo Legislativo, não inventadas pelo Judiciário

Na alta Idade Média apareceu um documento forjado que mudou o mundo. Seu objetivo era insidioso: falsificar o passado. Com o título em latim de “Constitutum Constantini”, o documento dava a entender ter sido escrito pelo próprio imperador Constantino no século 4. Só que na verdade a fake news foi forjada séculos depois, perto do ano 800.

O documento alegava que Constantino havia transferido para o papa todo o poder sobre o império. De quebra, transferia também vastos territórios europeus e os símbolos da autoridade imperial, que poderiam ser usados pelo papa para mostrar que todos os governantes se subordinavam a ele.

Essa malandragem (que em português é chamada de “Doação de Constantino”) teve um papel histórico importante. Impactou inclusive o Brasil. Quando Portugal e Espanha disputaram a repartição das terras nas Américas, coube justamente ao papa resolver a questão. Foi ele que editou a bula Inter Caetera, com base na autoridade supostamente dada a ele por Constantino (a bula foi atualizada no Tratado de Tordesilhas). Em suma, o Papa era o Supremo Tribunal Federal da época.

Corte para 2024. As fake news estão em toda a parte. São produzidas industrialmente. No campo da música, graças à inteligência artificial, começa a ocorrer um fenômeno curioso de falsificação do passado. Pegue por exemplo o grupo Habibi Habbas, formado na Líbia em 1970. No YouTube há o álbum Funky Caravan, lançado por eles em 1976. Só que esse grupo não existe. Ele foi forjado usando inteligência artificial, sua música foi toda feita por IA. Tudo é sintético e inventado (há até um segundo álbum, chamado Disco Kebab, de 1977).

O mesmo se aplica a Yuna Okira, artista japonesa que em 1980 lançou um álbum de música instrumental chamado Shizuka na Shunka (“Momentos Tranquilos”). Ou ainda, ao cantor e guitarrista iraniano Ghalibi Ghaboussi, que atingiu o auge em 1973 com o disco Royaye Gomshode (aliás, o meu favorito). Eles não existem. Mas na internet há álbuns inteiros de cada um, com biografias, capas e muito mais. São artistas “fake”. Criados em 2024 para parecer terem existido no passado. Não duvido de que no futuro fique difícil distinguir entre o passado “real” e o passado forjado pela inteligência artificial.

Por falar em fake news, o Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Um dos objetivos do STF é justamente combater “fake news”. Em voto proferido pelo ministro Dias Toffoli ele cita inúmeras leis, do Brasil e de outros países, que regulam a internet e inspiram o Supremo a “regular” também. Dentre elas o DSA, lei aprovada na Europa, o NetzDG, em vigor na Alemanha, e a Section 230, nos EUA. O que o ministro esqueceu de citar é que todas elas foram aprovadas pelo Poder Legislativo, isto é, pelos parlamentos. Nenhuma dessas leis foi inventada pelo Poder Judiciário. Talvez o ministro já esteja no futuro. Um em que as fronteiras entre o Parlamento e o Judiciário não existam mais. Tal como a música de Ghalibi Ghaboussi.

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