A inteligência artificial é pirata?

Coluna de Ronaldo Lemos na Folha de S.Paulo.

publicado em

2 de julho de 2024

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Acusações de violações de direitos autorais caíram como uma bomba no mundo da tecnologia

Nesta semana, a empresa de inteligência artificial Suno foi processada pela Sony, Warner e Universal, as três maiores gravadoras. A acusação: violação de direitos autorais, ou para os íntimos, pirataria. A empresa teria se utilizado das músicas controladas pelas gravadoras para construir seus serviços.

O Suno cria músicas com “qualidade de rádio” a partir de comandos de texto. Você pode digitar “uma bossa nova puxada no violão” e magicamente a música é feita, cantada em português ou qualquer outro idioma. Já escrevi um artigo aqui na Folha contando como ele funciona.

Essas ações judiciais caíram como uma bomba no mundo da inteligência artificial. Coincidência ou não, o valor de mercado da Nvidia, fabricante dos chips usados para IA, chegou a cair US$ 500 bilhões (!) na mesma semana. Isso pode indicar que existem pedras no caminho da inteligência artificial. E uma delas é o direito autoral.

As gravadoras acusam o Suno de ter usado músicas sem autorização para treinar a IA “em escala quase inimaginável”.

Dizem também que as músicas geradas pela plataforma imitam as originais. Por exemplo, ao pedir por uma música “dançante estilo anos 1970” o Suno gerou uma canção chamada “Prancing Queen”, que lembra o hit do ABBA.

Só para contextualizar, no mês passado o Suno levantou US$ 125 milhões em investimento e tem hoje 12 milhões de usuários pagantes. A pergunta é: a empresa deveria ter pagado antes pelas músicas para treinar sua plataforma?

A resposta a essa questão pode afetar todas as empresas de IA. Treinar uma IA com obras autorais seria algo permitido (“fair use”)? Ou esse treinamento demandaria a autorização prévia de cada autor? A tendência é que diferentes países irão dar respostas distintas a essa pergunta.

Nos EUA, a aposta das empresas de IA é que os tribunais do país irão dizer que o treinamento com obras autorais é “fair use”, e pode ser feito sem autorização. Países como o Japão estão seguindo um caminho semelhante.

Já outros trilham um sentido diametralmente oposto. É o caso do Brasil. No projeto de lei sobre inteligência artificial que está no Senado, o Brasil deixa muito claro que treinar uma IA comercial sem autorização prévia dos autores (e sem o devido pagamento) viola o direito autoral, não tendo nada de “fair use”.

Essa disputa poderá ter impacto nas relações comerciais globais, reguladas pela OMC (a Organização Mundial do Comércio). Todos os 164 países membros obrigam-se a proteger os direitos autorais e a seguir a chamada “Convenção de Berna”.

Cedo ou tarde poderá surgir a interpretação de que os sistemas de inteligência artificial treinados sem autorização ou o pagamento prévio dos autores das obras usadas teriam sido construídos por meio de um “subsídio”: o não pagamento do direito autoral.

Isso seria inconsistente com as regras da OMC e poderia levar a retaliações, tanto locais quanto internacionais.

Essa questão fará parte do grande jogo travado entre os países sobre a inteligência artificial? Como cantava Doris Day no filme “O Homem Que Sabia Demais”: “O que será, será”.

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