Bitcoin vira moeda em El Salvador

Coluna semanal de Ronaldo Lemos publicada na Folha de São Paulo

publicado em

15 de junho de 2021

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Temor é que adoção sirva como passe livre para uso na lavagem de dinheiro

A notícia entusiasmou quem aposta nas criptomoedas. El Salvador tornou-se o primeiro país do mundo a dar curso forçado para o bitcoin. Tornou a criptomoeda uma moeda mesmo (e não apenas um ativo), que a partir de agora deve ser aceita em todos os pagamentos do país, dos bancos ao supermercado. Além disso, como moeda, não está sujeita a tributação por ganho de capital na sua valorização ou desvalorização.

Parece uma boa notícia, mas a realidade é bem mais complicada. El Salvador é o segundo país mais violento do mundo, com uma taxa de homicídios de 66 assassinatos por 100 mil habitantes. As instituições democráticas que caracterizam o Estado de Direito vêm sendo demolidas desde o ano passado, a partir do momento em que o presidente dominou os três Poderes no país.

Mais do que isso, o território de El Salvador é dominado por milícias, como a Mara Salvatrucha (MS-13) e a Barrio 18, ambas com ramificações internacionais que chegam aos EUA.

Dentre suas atividades, está o tráfico de armas, drogas e pessoas. O Partido Republicano americano cita com frequência essas milícias como uma das razões pelas quais os EUA deveriam adotar um controle mais rigoroso da imigração latina e das fronteiras. Integrantes da MS-13 foram acusados, por exemplo, de decapitar um homem e arrancar seu coração em um parque público, perto de Washington.

O temor é que a adoção do bitcoin como moeda sirva como passe livre para seu uso na lavagem de dinheiro internacional e no fortalecimento do poder dessas organizações criminosas no país.

Curiosamente, quase todas as notícias que trataram da adoção do bitcoin por El Salvador ignoraram por completo esse triste contexto, provavelmente fascinados pela novidade (dis)utópica.
Se antes organizações internacionais se preocupavam apenas com a derrocada da democracia e com a escalada da violência no país, agora as preocupações abrangem também o setor financeiro.

O FMI foi rápido em dizer que “a adesão ao bitcoin como moeda corrente apresenta inúmeros problemas macroeconômicos, financeiros e legais”. El Salvador estava justamente em busca de um empréstimo de US$ 1 bilhão do FMI, que agora está sendo revisto.

Não demorou para que os mais entusiasmados com a notícia começassem a passar o chapéu na comunidade das criptomoedas em busca de levantar o bilhão de dólares para o país, com uma campanha denominada “f… the IMF”.

No mundo de hoje, tudo é possível. Mas o gosto amargo depois da euforia inicial da notícia começou a tomar conta mesmo daqueles que ficaram mais animados com ela.

Afinal, na prática, o uso massificado do bitcoin é hoje praticamente impossível. Primeiro porque não tem escala. O bitcoin consegue processar apenas cerca de 4,6 transações por segundo, ante 1.500 por segundo da Visa, por exemplo.

Além disso, o custo de cada transação está em cerca US$ 8, e a volatilidade da criptomoeda é gigantesca. Desse modo, dificilmente o bitcoin vai ser usado pelo cidadão comum. Já por organizações criminosas com ramificações internacionais esse uso é bem mais provável.

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