Brasil não precisa importar nova regra de Trump sobre redes sociais

Coluna semanal de Carlos Affonso de Souza no UOL.

publicado em

1 de junho de 2020

categorias

{{ its_tabs[single_menu_active] }}

tema

O Brasil volta e meia flerta com a importação de experiências legais estrangeiras sem a devida atenção ao que já existe por aqui. O caso da ordem executiva baixada pelo presidente americano Donald Trump sobre a responsabilidade de conteúdo das redes sociais é mais um episódio da série.

No mesmo dia em que a ordem foi publicada nos EUA, começaram a aparecer reações do lado de cá sobre a oportunidade de algo semelhante ser adotado pelo governo brasileiro.

4. É isso tudo que torna a medida executiva contra a censura nas redes sociais, assinada hoje pelo Presidente Trump, tão importante. O Governo brasileiro está estudando essa medida e buscará implementar, pelas vias cabíveis, normas similares para garantir a liberdade nas redes.

— Filipe G. Martins (@filgmartin) May 29, 2020

Antes de mais nada, vale lembrar que existe uma diferença grande entre o que levou à assinatura da “executive order” do Trump e o que leva o nosso Congresso atualmente a debater uma lei anti-fake news. Lá o discurso é que plataformas estão controlando demais o conteúdo; aqui a queixa é que estão controlando menos do que deveriam.

Nos EUA a discussão trata do poder das plataformas em marcar e remover conteúdos como sendo falsos ou danosos, o que prejudicaria a liberdade de expressão, especialmente quando o grupo mais conservador se vê como alvo preferencial dessas medidas.

Então as vítimas no debate americano seriam os autores de postagens que teriam seus conteúdos removidos ou marcados. A nova regra poderia fazer com que essas pessoas pudessem processar as plataformas por violação à liberdade de expressão. Esse recurso nos EUA não existe porque a lei garante 1) não apenas que provedores não sejam tratados como “editores” de conteúdo postado por terceiros, 2) como também não sejam condenados caso, de boa-fé, decidam remover algo que entendam como “obsceno, lascivo, excessivamente violento, ameaçador ou censurável”.

No Brasil isso nunca foi um problema. O artigo 19 do Marco Civil da Internet não é a Section 230 do Communications Decency Act americano, que está sob ataque do Presidente Trump. A imunidade que existe aqui para provedores é sobre o conteúdo postado por terceiros (geralmente seus usuários), mas não sobre a sua remoção e atividades das empresas na moderação de conteúdo. De certa forma, temos a primeira parte da legislação americana, mas não a segunda (conhecida por lá como “bloqueio do bom samaritano“).

A imunidade no Brasil é para responsabilidade por atos de terceiros e não por atos próprios dos provedores. O que se quer fazer nos EUA já é uma realidade no Brasil, com usuários processando e ganhando ações quando as plataformas agem e removem abusivamente conteúdos.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet diz que provedores não serão responsáveis pelos atos de terceiros (seus usuários) até que uma ordem judicial afirme que o conteúdo é ilícito. A partir desse momento, caso elas não removam o conteúdo elas passam a ser responsáveis por ele.

O alvo da nossa lei é impedir que as plataformas respondam por tudo que é postado de cara, então é uma lei que impede os provedores de virarem juízes definitivos do que é lícito ou ilícito. A imunidade é para “danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros” e só até a ordem judicial.

A imunidade que Trump quer remover nos EUA jamais existiu no Brasil. O provedor aqui pode remover conteúdo antes de uma decisão judicial, de olho nos seus próprios Termos de Uso, mas essa medida pode também ser objeto de contestação judicial. Vários usuários, se sentindo prejudicados por remoção de páginas, vídeos e fotos já processaram provedores por aqui e ganharam as ações. Isso porque a imunidade do artigo 19 do Marco Civil justamente não pega essas situações.

Quando uma plataforma marca, remove ou reduz a visualização de um conteúdo erroneamente, indo além do seus próprios Termos de Uso, o dano é derivado de um “ato próprio” dela. A imunidade do artigo 19 é só para “atos de terceiros”.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por exemplo, já condenou a Google por ter removido erroneamente vídeos de paródias musicais do YouTube alegando ofensa à direito autoral. O autor do canal, que fez paródia das músicas “Malandramente” e “10%”, processou e levou justamente porque a imunidade não pega atos próprios das plataformas.

O Poder Judiciário já obrigou também o Facebook a republicar posts de Eduardo Bolsonaro que a plataforma havia apagado. Da mesma forma, o Poder Judiciário do Distrito Federal já condenou o Facebook por ter erroneamente removido a “fanpage” de um deputado.

Ou seja, não precisamos importar a remoção da imunidade que Trump quer impor nos Estados Unidos porque essa imunidade nunca existiu por aqui. Ações das plataformas diretamente sobre o conteúdo são “atos próprios” e não estão cobertos pela regra do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

A realidade que a ordem executiva americana procura criar nos Estados Unidos já existe nos diversos processos em que o Judiciário brasileiro analisa se o autor de uma postagem ou o dono de um canal realmente teve seu conteúdo removido, filtrado ou marcado de modo equivocado e abusivo. Não precisamos de uma nova lei para criar o que já existe.

{{ pessoas.pessoaActive.title }}

×

Ficou interessado?

Saiba mais Conheça o curso Fake News e Eleições