Compra da Warner pela Netflix dá Oscar para IA – e isso redefine o cinema

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

10 de dezembro de 2025

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A possível compra da Warner pela Netflix marca o triunfo do streaming e sugere uma redefinição do cinema, com foco em eventos audiovisuais para o lar

Quando a notícia da possível aquisição da Warner pela Netflix começou a circular, boa parte das análises correu para o caminho mais evidente: o streaming venceu e as salas de cinema perderam.

O futuro do cinema não estaria mais em grandes lançamentos para se ver na tela grande, mas em eventos audiovisuais que grudam as pessoas no sofá da sala.

Por trás da face mais visível dessa aquisição, que é o triunfo do streaming, se esconde um outro fator tão ou mais importante. A criação audiovisual está sendo fortemente impactada pelo avanço das ferramentas de inteligência artificial generativa, que ainda estão na sua infância.

Nos próximos anos, a criação de vídeos super-realistas com IA, de média ou longa duração, com enredo engajante e múltiplas possibilidades de personalização a partir da audiência, vai chacoalhar a indústria.

O que a Netflix fez foi pagar caro para sair na frente.

Se a operação for aprovada pelos órgãos reguladores, a Netflix não comprará apenas um conglomerado de mídia, mas assumirá o controle de algumas das propriedades intelectuais mais valiosas da cultura pop global: de Harry Potter aos heróis da DC (Batman, Superman, Mulher-Maravilha), de Game of Thrones a sitcoms que moldaram gerações, como Friends e The Big Bang Theory.

É um salto que, em qualquer momento da história de Hollywood, já seria imenso.

Mas no exato instante em que ferramentas de IA começam a gerar vídeos, cenas e até filmes completos com custos decrescentes, esse salto se torna estratégico porque ele aposta que nesse futuro em que criar vídeos será cada vez mais barato, quem controlar as principais propriedades intelectuais controlará a remuneração pelas licenças e a atenção de um público que tende a ser cada vez mais dispersa.

Crossover infinito, custo mínimo

Ao incorporar o catálogo da Warner, a Netflix ganha a possibilidade de testar, quase sem fricção, um fascínio sempre presente na cultura pop: o que aconteceria se personagens de universos diferentes se encontrassem?

Batman como o detetive que investiga o assassinato do rei em Westeros? Sheldon Cooper como o novo aluno de Hogwarts? Nem sempre crossovers funcionam, mas eles mexem com a imaginação dos fãs e estarão disponíveis em um futuro muito próximo — desde que você tenha os direitos.

Mesmo que a Netflix decida não misturar universos de maneira tão explícita, a mera redução de custos na produção audiovisual já reconfigura as regras do jogo.

Estúdios passam a conseguir gerar novas temporadas, spin-offs e até reboots com velocidade inédita.

O movimento mais profundo, contudo, não está do lado da oferta, mas sim da demanda.

O espectador vira o estúdio

Tudo leva a crer que a trajetória atual das ferramentas generativas vai permitir, muito em breve, que os espectadores produzam facilmente versões personalizadas de suas histórias favoritas.

Pequenos filmes, aberturas alternativas, episódios “perdidos” de sitcoms, universos paralelos de super-heróis: tudo criado pelo próprio fã e com qualidade ajustada para as telas dos celulares.

Se o valor de uma franquia sempre esteve em controlar quem podia contar as histórias oficiais, agora o desafio é controlar quem pode contar qualquer história com aqueles personagens.

E é aqui que a aquisição da Warner revela seu movimento mais ousado: posicionar a Netflix não apenas como o maior estúdio, mas como a plataforma dominante de IA para histórias licenciadas.

A escolha que a Netflix vai fazer logo mais à frente para cada franquia de sucesso é se ela licencia a propriedade intelectual para que os personagens e seu universo correspondente passem a integrar plataformas de IA de terceiros ou se ela monopoliza o controle sobre a propriedade intelectual, fazendo com que, se você quiser assistir (ou criar) um filme com o Batman, você precise estar com a sua mensalidade da Netflix em dia.

Regulação incerta, vantagem antecipada

Tudo isso acontece exatamente enquanto as principais decisões judiciais sobre direitos autorais e treinamento de IA ainda não foram escritas em pedra, e legislações ao redor do mundo caminham em direções divergentes.

Se a proteção dos direitos autorais acabar sendo definida em contornos mais abrangentes, pegando tanto o treinamento de IA como os resultados dos sistemas generativos, quem tiver as maiores franquias vencerá a corrida pelas licenças.

Se a lei for mais permissiva, liberando que obras autorais sejam usadas para treinar sistemas, a trava não estará no licenciamento prévio, mas nas notificações e ações que vão mirar nos resultados extraídos de sistemas de IA: “o seu herói-morcego genérico se parece muito com o meu Batman”.

Em ambos os cenários, a Netflix se move para não ser apenas distribuidora de conteúdo, mas o ambiente onde esse conteúdo é criado, remixado e monetizado.

Hollywood no espelho da IA

É por isso que ler a possível compra da Warner apenas como a derrocada das salas de cinema é perder de vista essa outra, e talvez mais profunda, transformação histórica pela qual atravessa a indústria do audiovisual.

Não estamos vendo apenas a vitória do streaming, mas sim o início de um ciclo em que Hollywood passa a ser redesenhada pelas ferramentas de IA, tanto na lógica da produção como da circulação das histórias mais icônicas.

Se estúdios vão cada vez mais fazer filmes com IA — e se espectadores vão cada vez mais querer fazer filmes com seus personagens favoritos — então a Netflix aposta que ela pode sair na frente e definir as regras do jogo.

Entre crossovers, licenciamentos, algoritmos de recomendação e plataformas para criação de conteúdo a partir de franquias populares, o futuro de Hollywood parece tomar uma nova direção.

Já pode entregar o Oscar para a inteligência artificial.

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