É possível criar um novo país a partir de uma garagem?

Coluna de Ronaldo Lemos na Folha de S.Paulo.

publicado em

1 de outubro de 2024

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Movimento 'The Network State' defende a ideia de que a tecnologia já permitiria a criação de um Estado novo e descentralizado

Várias empresas (ou bandas de rock) surgiram em uma garagem. Seria possível criar um país da mesma forma? Essa é a proposta do movimento “The Network State”, ou o “estado em rede”. O conceito foi desenvolvido por Balaji Srinivasan, autor do livro de mesmo nome que pode ser baixado gratuitamente online.

A ideia é que a tecnologia já permitiria hoje a criação de um país novo e descentralizado. Ele seria construído por pessoas de diferentes partes do mundo que compartilham valores e se organizariam primeiro na forma de uma comunidade online. A partir daí, esse novo “país” poderia emitir sua própria moeda, usando a tecnologia das criptomoedas. Faltaria então o terceiro elemento: o território.

Balaji propõe que o novo “país” não precisa ter um território contínuo. Poderia se espalhar por enclaves em vários lugares. No futuro, poderia começar a adquirir territórios, inclusive com a ambição de declarar soberania política e jurídica sobre ele (como o Acre foi comprado da Bolívia).

Tudo pode parecer mirabolante, mas na semana passada aconteceu a primeira conferência sobre o tema em Singapura. O evento reuniu empreendedores, liberais, sonhadores e entusiastas em geral.

Lá ficou claro que já existem casos de implantação concreta dessa ideia.

Um deles fica em Honduras, localizado na ilha de Roatán e batizado de “Próspera”. Em 2013 a Constituição hondurenha foi modificada para permitir a criação de ZEDEs (Zonas de Emprego e Desenvolvimento Especiais). Essas zonas têm autonomia legal e administrativa. Podem adotar suas próprias leis (com exceção da legislação criminal e de imigração).

Próspera foi uma das ZEDEs criadas. Atraiu empreendedores de vários lugares e se destacou especialmente em biotecnologia. Várias empresas se estabeleceram lá para acelerar a pesquisa de novos medicamentos, encurtando o tempo de aprovação que usualmente leva de dez a 15 anos nos Estados Unidos.

Visitei Próspera neste ano para gravar o Expresso Futuro, série de documentários que faço para o Canal Futura (estreia dia 25 de novembro). No entanto, provavelmente terei de alterar a série. A razão é que a Suprema Corte de Honduras declarou no dia 20 de setembro que as ZEDEs são inconstitucionais em uma votação apertada de 8 a 7, com efeitos retroativos a 2013.

A decisão caiu como uma bomba para os entusiastas dos Network States e para os integrantes do ecossistema que se formou na ilha de Roatán. Uma longa batalha judicial está se iniciando, já que Honduras assinou tratados internacionais em que se comprometeu a manter Próspera por ao menos 50 anos ou pagar uma indenização calculada na casa de US$ 10,7 bilhões (cerca de R$ 58,1 bilhões na cotação atual) se voltasse atrás (a decisão é por arbitragem internacional).

No documentário mostro como pessoas do mundo todo foram atraídas para lá por conta da proposta de formar novas comunidades autônomas. Uma delas, chamada Vitalia, tem o objetivo de expandir a vida humana indefinidamente. Seu desafio agora tornou-se expandir a vida de Próspera o máximo possível.

Já era – Charter Cities como o modelo mais elaborado de autonomia

Já é – Network States

Já vem – Movimentos de descentralização querendo se manifestar fisicamente

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