Febre reborn: poucas coisas saem de moda tão rápido quanto a realidade

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

25 de maio de 2025

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A febre dos bebês reborn reflete a preferência crescente pela artificialidade em detrimento da realidade, com eventos como o "Dia da Cegonha Reborn" no Rio.

Tem uma história contada pela professora do MIT Sherry Turkle que eu sempre levo para a sala de aula. Em 2005, ela e a filha, então pré-adolescente, foram ver uma exposição sobre Darwin no Museu de História Natural de Nova York. A exibição começava com duas tartarugas-gigantes trazidas das Ilhas Galápagos. Dois símbolos vivos daquilo que Darwin viu em suas viagens e usou para desenvolver a teoria da evolução.

Uma das tartarugas estava escondida e a outra, mais visível, estava paradona. A pré-adolescente inspecionou a situação e, contrariada, disse: “Eles poderiam ter colocado tartarugas-robô”. A professora se espantou com a reação da filha, que não dava muito crédito ao fato de que as tartarugas em exibição estavam vivas, de que elas eram autênticas. Ao perguntar para outras crianças no museu, as respostas confirmaram o vaticínio: as tartarugas originais não eram páreo para a súbita demanda por tartarugas-robô.

Toda autenticidade será castigada

Poucas coisas estão saindo de moda tão rapidamente como a realidade. Nas últimas semanas, o mais recente episódio da escalada do artificial em detrimento do real foi a febre com os chamados bebês reborn, bonecos feitos de silicone que procuram reproduzir um bebê de verdade. Teve parto de bebê reborn na televisão, projeto de lei na Câmara Municipal do Rio de Janeiro criando o “Dia da Cegonha Reborn”, e gente querendo levar o boneco para ser atendido no SUS.

É claro que existe espaço para a produção de bonecos que possam ajudar pessoas a superar situações traumáticas e complexas. Mas a sua utilização precisa ser acompanhada, até porque existe discussão sobre como esses objetos podem gerar dependência emocional. Em entrevista a Tilt, o antropólogo James Wright questionou o uso de robôs para o cuidado de idosos no Japão, mostrando como até mesmo uma foca de pelúcia que emite sons ao ser acariciada estava criando problemas quando as pessoas não mais queriam largar o objeto.

As pessoas que compraram um bebê reborn sabem que adquiriram um boneco, por mais que ele se pareça com um bebê autêntico. Então, de onde vem o assombro coletivo? Uma parte parece ser um incômodo com a intensidade pela qual se passou a viver e a comunicar a jornada de cuidados com o bebê reborn. A simulação de situações reais mais lembra um LARP (live-action role playing game) de maternidade ou paternidade.

Outra parte da explicação vem do conforto que a experiência simulada oferece, da segurança em depositar e testar sentimentos em uma relação na qual tudo está absolutamente sob controle. Nenhum contato humano permite tamanho privilégio. Em um mundo repleto de dissabores, sofrimentos e mal-entendidos, a artificialidade virou um bálsamo. Quem precisa de relacionamentos autênticos afinal? É aqui que o mundo da tecnologia encontra a febre dos bebês reborn.

O metaverso através do espelho

Quando Mark Zuckerberg mudou o nome da empresa Facebook para Meta ele prometia um futuro no qual as nossas relações com as outras pessoas seria mediada por ambientes virtuais imersivos. Poucos anos depois, o mesmo Zuckerberg anunciou a criação de amigos de inteligência artificial para nos fazer companhia. Assim, o futuro prometido cada vez mais se parece com um jogo de videogame para uma pessoa só e repleto de personagens não jogáveis, com os quais podemos interagir.

O metaverso virou piada, sendo visto como um hype que não se concretizou. O tempo passou e até hoje ninguém pode dizer que está para valer no metaverso. Existem espaços imersivos aqui e ali no qual se interage via avatares, mas a virtualização de tudo prometida pelo metaverso ainda não chegou.

São várias as razões para isso e muitas delas se relacionam com a ausência de tecnologia e dispositivos acessíveis, conectividade e poder computacional para tirar o metaverso do papel. Enquanto não mergulhamos de cabeça no mundo da simulação digital, parece que esse vetor de virtualização e de artificialidade atravessou o espelho e invadiu o mundo dos átomos. Pais e mães de bebês reborn já estão prontos para ter amigos feitos por inteligência artificial.

Em certo sentido, o fenômeno dos bebês reborn se parece com um grande teste do metaverso e das interações simuladas, só que ao invés de avatares digitais as pessoas estão construindo relações e depositando sentimentos em bonecos de silicone. No final das contas, os bebês reborn são como as tartarugas-robô que a menina tanto queria na exposição: sai de cena o inconveniente da realidade autêntica, entra em cena uma artificialidade controlada.

Escrevo esta coluna em um hotel em Goiânia e no quarto ao lado um bebê chora ininterruptamente enquanto os responsáveis tentam acalmá-lo. Impossível não pensar como essa novíssima geração, que acaba que chegar, vai receber um mundo repleto de escapismos tecnológicos. Eles vão abraçar a simulação como o novo real ou vão encontrar meios que equilibrar o jogo? Ainda vai levar um tempo para eles decidirem o que fazer, mas esse choro autêntico tarde da noite já parece um ato de rebeldia.

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