Invasão ao Capitólio não “saiu da internet”; esta separação não existe mais

Coluna de Carlos Affonso no UOL

publicado em

11 de janeiro de 2021

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Os anos 20 do século 20 entraram para a história como sendo “loucos”. O mundo saiu da Primeira Guerra, superou a gripe espanhola e um certo sentimento de retorno à normalidade fez explodir novos movimentos artísticos, novos costumes e uma visão desenfreada de progresso. Bom, pelo menos até o crash de 1929.

Dizer como serão os nossos anos 20 quando se conhece apenas meia dúzia de dias pode ser temerário. Mas a depender do que se viu até aqui temos muito a temer. A invasão do Congresso dos EUA pode ter inaugurado uma década de alienação e violência.

Mas não vamos nos apressar a culpar os novos anos 20. Assim como um prefeito que recebe as chaves de um município quebrado, essa década nem teve tempo de desarmar a bomba que foi deixada pela administração passada. Os anos 10 geraram um legado crítico sobre a influência da tecnologia em nossas vidas. Essa reflexão hoje parece clichê, mas vale lembrar que em 2010 o termo “fake news” ainda não havia entrado em cena e que para muitos algoritmos era algum ritmo.

Nos anos 10 aprendemos a tirar selfie, a mandar por “Zap” e a transformar tudo em meme. Mas também aprendemos que ao lado de todas as inovações fantásticas proporcionadas pela rede e seu ecossistema de aplicações, existem usos dessa mesma infraestrutura para agredir, alienar e desinformar. Como coibir esses usos danosos sem prejudicar as inovações que transformam nossas vidas para melhor é um desafio que essa década vai precisar responder.

Vai ser difícil manter o equilíbrio quando o primeiro ato de atenção global dos novos anos 20 é genuinamente louco. E não de uma forma boa. O grupo que invadiu e depredou o Congresso norte-americano não “saiu da internet”, conforme tanto se reportou na imprensa. É uma ilusão separar de um lado o planejamento do ato nas redes sociais (como Gab e Parler) e colocar em outro a sua execução na “vida real”. A invasão ocorreu na e para a internet.

Basta ver nas imagens da invasão quantos indivíduos filmavam a si mesmos enquanto andavam pelos corredores gritando palavras de ordem. Não faltaram lives e transmissões ao vivo para compartilhar o momento. O lugar em que a invasão estava acontecendo era na internet.

E para a internet também tudo isso foi feito. Quantas vezes na vida uma pessoa pode fazer história e meme ao mesmo tempo? Ao tirar fotos quebrando janelas, invadindo gabinetes e furtando materiais de escritório como se fossem souvenirs, essas pessoas buscam reconhecimento nas redes. Querem ser vistas nos fóruns que frequentam como pessoas corajosas.

Na Antiguidade Clássica o processo de transformar meros mortais em deuses era chamado de apoteose. Sempre achei lindo isso do desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro terminar na Praça da Apoteose, como se cada um que passasse sambando por ali deixasse de ser humano para se tornar divino. Não é sempre que Júlio César e Luma de Oliveira cabem no mesmo contexto. Ambos passaram pela apoteose.

Virar meme é a apoteose dos nossos tempos. Os invasores do Capitólio queriam se eternizar nas imagens e nas filmagens do evento. Em especial, queriam que essas imagens fossem compartilhadas na rede e que recebessem a aprovação dos seus pares, que compartilham da mesma alienação.

Existe algo extremamente infantil na postura desse grupo. Não saber perder, sempre botar a culpa nos outros, acreditar em fantasias e não assumir a responsabilidade por seus atos são essencialmente qualidades infantis, de quem ainda não caminhou os passos da vida adulta. Uma criança raramente assume a culpa quando faz algo errado. A culpa é sempre do irmão, da irmã, do cachorro. Mas isso passa (ou deveria passar).

A mistura que faz a cabeça do grupo que invadiu o Congresso não é apenas infantil, mas também alienante. A junção de teorias da conspiração com a consagração de um heroísmo patriótico é extremamente tentadora. A grande droga dos anos 20 se chama narrativa. Ela não é traficada em fundo falso de malas ou engolida para passar no controle de aeroportos. Ela se espalha pelas mentes que cada vez menos conseguem separar o real do virtual. Tudo é tela.

Como em um game, para muitos invasores provavelmente entrar no Congresso e roubar a caixa com os votos devia ser uma quest de RPG, uma fase de um jogo. Não causou surpresa quando a imprensa noticiou que a tatuagem que um dos invasores mais notórios ostenta em uma das mãos foi justamente tirada de um game. No jogo “Dishonored” um grupo secreto atua para derrubar um governo corrupto. Eles recebem a ajuda de um elemento externo, chamado de Estranho, que imprimiu uma marca em suas mãos e que lhes concede poderes sobrenaturais.

Tirando essa parte dos poderes tudo se parece demais com a narrativa do QAnon, teoria da conspiração que defende a existência de um agente infiltrado no governo que teria denunciado uma rede de pedofilia e de tráfico de pessoas que estaria sendo combatida por Donald Trump. Ela já levou um americano a invadir uma pizzaria para salvar as crianças que estariam sendo traficadas no interior da loja. Muitos dos invasores do Congresso vestiam camisas com a letra Q.

Não faltaram outros elementos de cultura das redes na invasão ao Congresso, como a bandeira do Kekistão, país fictício criado nos fóruns da 4chan, um dos mais populares fóruns de mensagens. A bandeira mistura elementos nazistas com mitologia egípcia e o sapo Pepe. Ver esses símbolos que parecem pertencer apenas ao mundo online se manifestando em protestos e invasões parecem diluir ainda mais a fronteira entre o que acontece na rede e os seus impactos fora dela.

Nos protestos de 2013 no Brasil apareceram por todo canto cartazes dizendo “Saímos do Facebook”. Na invasão do Congresso americano em 2020 não vimos ninguém segurando um cartaz escrito “Saímos do Gab” ou “Saímos do Parler”. Talvez porque esses cartazes já não façam mais sentido. Os invasores não saíram das redes sociais para participar da invasão. Ela ocorreu nas e para as redes.

Essa integração entre o online e o offline vai pautar os anos 20. Não se trata apenas de carregarmos a internet no bolso através dos nossos celulares. A internet e a sua cultura, com seus símbolos e sentidos, já saíram há muito tempo dos dispositivos que associamos com elas. A rede está nas ruas e nas cabeças.

O que acontece nas redes não fica nas redes, mas se manifesta nas artes, nos costumes e em nossa visão de progresso. Os loucos anos 20 do século passado trouxeram o automóvel e o rádio. Os nossos trouxeram até aqui um vândalo descamisado com elmo de chifres e tatuagem de videogame. Os anos 20 do século 20 nos deram o surrealismo. Os anos 20 do século 21 serão surreais.

 

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