Julgamento do Marco Civil da Internet no STF espelha impasses democráticos

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

5 de junho de 2025

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O julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet pelo STF reflete complexidades democráticas na relação entre liberdade e responsabilidade digital

Quanto mais tempo o Supremo Tribunal Federal leva para concluir o julgamento sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, mais assuntos entram na bagagem do caso. Quando os processos chegaram ao tribunal, tratava-se de ações relativamente circunscritas a pedidos de remoção de conteúdo. Não havia 8 de Janeiro no horizonte. Depois da depredação de prédios públicos em Brasília, o julgamento passou a carregar uma dimensão institucional: tornou-se parte da resposta do STF atacado às redes sociais que, na visão de parte da Corte, foram instrumentalizadas para organizar os atos violentos.

Mais recentemente, o tribunal parece ter avançado ainda mais, enxergando nas plataformas um papel ativo na formação da polarização e de seus desdobramentos violentos, especialmente no que diz respeito a conteúdos impulsionados. Mas aqui se abre uma confusão conceitual importante: impulsionamento pago e recomendação algorítmica são coisas diferentes. Se o STF não separar bem esses mecanismos, pode abrir brechas para um modelo de responsabilidade generalizada, com efeitos duradouros e preocupantes sobre o futuro da comunicação digital no Brasil.

O hiato entre o voto do ministro Luís Roberto Barroso, proferido no final de 2023, e a retomada do julgamento agora em 2025, também adicionou novos elementos à equação. A aproximação mais explícita entre as grandes plataformas e o governo americano — e, por outro lado, a retaliação anunciada pelo círculo de Donald Trump, com ameaças de sanção ao ministro Alexandre de Moraes — ajudaram a tornar o processo ainda mais sensível. O que antes era um debate sobre regras de responsabilidade civil na internet transformou-se em um campo minado de disputas geopolíticas, institucionais e jurídicas. Quanto mais o tempo passa, mais o julgamento se torna grave e multifacetado.

Três votos, três caminhos

Até aqui, três votos foram proferidos — e cada um aponta numa direção bastante distinta. O voto do ministro Dias Toffoli propõe um regime de responsabilidade objetiva para conteúdos relacionados a temas como violência contra crianças, terrorismo, incitação ao ódio e até violações a direitos autorais (o que, por sinal, não existe em lugar nenhum do mundo). Ao dispensar a necessidade de culpa, Toffoli abre a porta para um modelo de responsabilidade que recai nas empresas simplesmente porque o conteúdo foi ao ar. Se é verdade que uma parte importante da moderação de conteúdo já é automatizada – e impede mesmo conteúdos identificados como danosos de se tornarem públicos – o salto dado pelo Ministro transforma o que é uma tecnologia repleta de erros e acertos em obrigação legal.

Já o voto do ministro Luiz Fux propõe um modelo de “notificação e retirada” que levanta preocupações. Na prática, qualquer pessoa que se sinta ofendida em sua honra poderia notificar uma rede social exigindo a remoção de um conteúdo, ainda que se trate de uma reportagem ou crítica legítima. Caso a remoção não ocorra, a plataforma se tornaria automaticamente responsável por sua manutenção. Esse desenho cria um efeito duplo: incentiva a remoção preventiva de conteúdos e estimula o litígio judicial, agora com o argumento facilitado de que houve desobediência à notificação.

O voto do ministro Barroso busca um caminho do meio. Estabelece um dever de cuidado mais amplo para as plataformas, mas evita o regime de notificações que, segundo ele, poderia ter efeitos intimidatórios. No que diz respeito a conteúdos ilícitos — especialmente crimes — Barroso entende que, uma vez notificados, as plataformas devem sim agir para removê-los. Para os casos envolvendo honra, contudo, o ministro prefere que a decisão final seja do Judiciário, preservando a mediação institucional nesses casos sensíveis.

O que vem pela frente

Com a retomada do julgamento, os olhos se voltam agora ao voto do ministro André Mendonça. Espera-se que sua manifestação traga mais força à defesa da liberdade de expressão, mas ainda não se sabe quais serão os seus contornos — e a quais novas exceções ao artigo 19 ele estará disposto a aderir. De todo modo, o fato é que, ao fim do voto de Mendonça, o plenário terá diante de si quatro visões bastante distintas sobre a responsabilidade de plataformas, e o desafio passará a ser identificar convergências mínimas e administrar divergências.

E o que virá depois disso? A costura da tese será complexa. Já se sabe que ainda estão por vir votos duros, como o do ministro Alexandre de Moraes, que deve trazer sua experiência no TSE e sua atuação no combate à desinformação como base de argumentação. Também se aguarda o voto do ministro Flávio Dino, que já manifestou críticas ao que considera uma interpretação excessivamente protetiva do artigo 19, mas que não parece defender sua total inconstitucionalidade.

Ou seja: mais do que decidir um caso, o STF precisará desenhar uma arquitetura interpretativa que acomode posicionamentos bastante heterogêneos. Terá que lidar ainda com um papel estranho, já que a decisão final da Corte terá cara de regulação, uma vez que o STF decidiu seguir com o julgamento a partir da dificuldade do Congresso Nacional em chegar a um consenso sobre o tema.

Para alguns, o próprio Congresso não ter chegado a um acordo é em si uma forma de resposta sobre o assunto.

A esta altura, o julgamento já deixou de ser somente sobre o artigo 19. Ele virou um espelho dos impasses democráticos, das tensões institucionais e da difícil relação entre liberdade e responsabilidade na era digital. E as cenas dos próximos capítulos prometem ser ainda mais complexas.

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