Letícia Spiller x Google: como decisão mirou cancelamento, Lula e fake news

Leia a coluna da semana de Carlos Affonso Souza para Uol Tilt.

publicado em

15 de setembro de 2023

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Google pode ser obrigado a remover resultados da sua ferramenta de busca que apontem para sites de teor sensacionalista? Quais parâmetros devem guiar esse tipo de remoção para que ela não afete a liberdade de expressão?

Perguntas como essa ganharam destaque no julgamento de um caso no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) envolvendo a atriz Letícia Spiller e a empresa responsável pelo buscador.

Tudo começou com uma entrevista

Letícia Spiller participou de um programa de entrevista no rádio em 2020, logo após o estouro das denúncias de assédio sexual envolvendo Marcius Melhem, que coordenava o departamento de humor da Rede Globo.

Na entrevista, a atriz comentou que nunca havia sido vítima de uma situação como a denunciada pelas atrizes, mas que, se fosse o caso, “ia botar a boca no mundo na hora”.

Segundo Letícia, o transcurso do tempo entre os episódios e a denúncia fez com que as pessoas se perguntassem o motivo da demora e fazer com que o denunciado se tornasse “o cara”, “o mártir dessa situação”.

Além disso, a atriz expressou sua decepção com Marcius Melhem, destacando que, quando o conheceu, o via como uma “pessoa querida” e “de bom coração”. Por isso mesmo, essas revelações estariam sendo muito duras para a atriz.

Letícia ainda elogiou a coragem das mulheres que compartilharam as suas histórias.

Sites distorcem as declarações

As declarações da atriz começaram então a repercutir nos sites que cobrem notícias sobre celebridades e a ganhar tração nas páginas de fofocas com manchetes sensacionalistas.

Para muitos desses veículos, a atriz teria defendido o acusado e criticado as atrizes por terem demorado a fazer a denúncia.

“Letícia Spiller defende Marcius Melhem e diz que ele ‘tem um bom coração’ e ‘virou mártir'”, estampava a chamada de um site.

Diante dessa situação, a atriz buscou a remoção dos links para esses sites da ferramenta de busca do Google. Ela argumentou que essas informações inverídicas e distorcidas estavam atingindo sua honra e imagem.

Em contrapartida, o Google alegou que não era responsável pelo conteúdo publicado por terceiros e que a ação deveria ser movida contra os autores das páginas.

O juiz do caso inicialmente decidiu pela não concessão de liminar para a remoção dos links, mas o tribunal, atendendo ao recurso da atriz, reconheceu a necessidade de se fazer essa remoção pelo menos até o exame completo da questão.

Ação contra Google e não contra os sites indexados na busca

Um ponto que chama atenção em ações como essa —que miram a ferramenta de busca do Google— é o papel que a empresa desempenha.

Se por um lado o Google não criou os conteúdos que causam dano, a exposição dos mesmos como resultado de pesquisa vem fazendo com que a empresa seja ré em processos que buscam a remoção desses links da pesquisa.

O tema é debatido no Superior Tribunal de Justiça desde o caso em que a apresentadora Xuxa buscou remover da busca do Google resultados para pesquisas pelo termo “xuxa pedófila”, ou que associassem o seu nome a práticas criminosas. O tribunal entendeu, em 2012, que “se a página detém conteúdo ofensivo, cabe à parte buscar a retirada desse conteúdo do site” e não do buscador.

Esse entendimento foi sendo excepcionado com o tempo, especialmente em casos envolvendo o chamado direito ao esquecimento.

O mesmo tribunal decidiu que, em circunstâncias excepcionais, como na hipótese de uma promotora cujo nome aparece ligado à suposta fraude em concurso para magistratura, seria possível obrigar a desindexação de resultados de busca.

Outro ponto que sempre aparece nas ações movidas contra o buscador é a escolha do Google em detrimento de qualquer outro repositório em que se possa encontrar o conteúdo lesivo.

O TJRJ, no caso da atriz Letícia Spiller, afirmou que o pedido ser direcionado apenas contra o Google não diminuiria a sua legitimidade “porque as buscas realizadas dentro de aplicativos como Facebook, Instagram etc. não costumam apresentar um resultado tão preciso e detalhado quanto as buscas realizadas na pesquisa Google que se destina exclusivamente a esse fim”.

Liberdade de expressão não é absoluta

O caso da atriz Letícia Spiller contra o Google envolve também o debate sobre liberdade de expressão e de imprensa. Será que todos os sites distorceram as falas da atriz de propósito para ganhar mais cliques? Deveriam todos ser tratados da mesma forma?

O tribunal observou que, embora a liberdade de imprensa seja essencial, ela tem seus limites.E não deve ser usada para disseminar informações falsas ou prejudicar a reputação de alguém. Segundo a decisão, esse tipo de matéria não é “informação que mereça proteção sob o escudo da liberdade de expressão ou de imprensa”.

Pesou na decisão do tribunal o fato de a atriz ter sido atacada e recebido diversas críticas nas redes sociais depois da veiculação das matérias nos sites.

Os comentários recebidos iam desde “por fora bela viola, por dentro pão bolorento”, até outros que mostravam a decepção dos fãs com a atriz (“eu te admirava, mas não mais. Você, por ser mulher, deveria ter ficado do lado das vítimas e não do agressor. Melhore! Principalmente como ser humano”).

Segundo a decisão:

“Essas distorções inverídicas são suficientes para ofender a honra da agravante, uma vez que o público ainda não consegue ter o discernimento necessário para não ser influenciado indevidamente por manchetes de jornais, tampouco sabe respeitar a diversidade de opiniões, tamanha a dor que certos temas provocam ou também em razão do apego a certas convicções ideológicas (como punir sem direito à defesa um acusado de assédio).”

E o Lula? E o PT?

Em um dado momento, a decisão passa a criticar a postura das pessoas que se mobilizaram nas redes sociais para cancelar Marcius Melhem e, consequentemente, atacar a atriz a partir das manchetes distorcidas dos sites de fofoca (“por que a ideia de defender alguém é tão intensamente rejeitada pelo público?”).

Nesse particular, o desembargador identifica uma contradição entre a “postura de perseguição” com o acusado de assédio e a tolerância com relação a práticas de políticos.

A decisão não cita nomes, mas parece clara a referência às condenações do presidente Lula em ações penais, posteriormente anuladas pelo STF:

“É no mínimo curioso que, paradoxalmente, o mesmo Público não adota a mesma postura de perseguição contra ex-governantes do país (e muitas vezes ainda os defende) que, mesmo após condenações em variadas instâncias de julgamento, são considerados inocentes da prática de crimes de corrupção. Ressalte-se que, no caso do Marcius Melhem, ele [nem] sequer foi acusado formalmente num juízo criminal por assédio sexual.”

Apenas para fins de atualização: o Ministério Público do Rio de Janeiro ofereceu denúncia contra Marcius Melhem, que foi acatada pelo TJRJ em 8 de agosto de 2023, transformando assim o ex-diretor em réu.

Acabou a empatia

Ao discorrer sobre liberdade de expressão no caso da atriz Letícia Spiller, a decisão do TJRJ acaba afunilando para uma discussão sobre cultura do cancelamentoempatia e censura.

Aqui o terreno é de areia movediça, e a defesa de grupos vulneráveis aparece junto com a menção a silenciamentos “sofridos principalmente por pessoas públicas”.

Mais uma vez não há referência nominal na decisão. Quais seriam as pessoas públicas silenciadas? E sobre quais temas? Esse é o trecho que aborda a questão:

“Percebe-se, mais uma vez, o paradoxo da sociedade: atualmente fala-se tanto em empatia, sobretudo às minorias, mulheres, negros, pessoas com deficiência, pessoas gordas, gays, lésbicas, transexuais, não binários, entre outros; fala-se muito também em direito à liberdade de expressão, na importância de lutar contra todo o tipo de silenciamento, como o de vítimas de todo tipo de abusos; mas, ao mesmo tempo, neste caso, como em muitos outros sofridos principalmente por pessoas públicas, observa-se uma absoluta falta de empatia e até mesmo uma censura à opinião da atriz.”

Não deixa de ser pertinente apontar como uma controvérsia sobre a desindexação de resultados de busca acabou inserida em um contexto mais amplo e complexo.

De certa maneira —e cada vez com mais frequência— as percepções sociais e políticas dos magistrados vão ser ativadas em casos que envolvem liberdade de expressão.

Esse é um tema sobre o qual a academia jurídica vem se debruçando e que demanda uma atenção crescente.

Remove tudo ou só da busca pelo nome da atriz?

A decisão do TJRJ no recurso apresentado pela atriz não é a decisão final do caso. Ela só determinou que seria necessário, nesse momento e para proteger os direitos da atriz, remover os links da busca do Google enquanto se espera uma análise final.

Mas fica uma dúvida sobre como essa remoção vai ser feita.

Logo no começo da decisão o desembargador aponta que a discussão envolve a desindexação de “resultados de pesquisa sobre o nome da agravante [Letícia Spiller] realizadas através do provedor GOOGLE”.

Ao determinar a remoção, o desembargador assim se manifesta:

“VOTO no sentido de DAR PROVIMENTO ao recurso para que os links listados às fls. 108/166 dos autos originários (item 53 da petição inicial) sejam retirados/excluídos do ar, isto é, das buscas realizadas através do provedor GOOGLE, no prazo de 48 horas, sob pena de multa de R$ 10.000,00, por hora de atraso no cumprimento.”

Será que o tribunal decidiu que os links das reportagens dos sites devem sumir da busca do Google como um todo ou apenas quando a pesquisa na ferramenta for feita pelo nome da atriz?

Esse é um ponto importante, já que em inúmeros casos envolvendo o chamado direito ao esquecimento, argumentou-se que não se estava desaparecendo com o link do Google, mas apenas fazendo uma desindexação que afetava a pesquisa pelo nome da pessoa e o resultado indesejado.

A escolha por uma metodologia ou por outra importa para o debate sobre liberdade de expressão, já que a remoção dos links apenas para pesquisas pelo nome da pessoa (ou por outros parâmetros) não retira a possibilidade de o conteúdo ser encontrado nos buscadores como um todo.

Além disso, vale questionar se todos os links indicados pela atriz efetivamente mereciam o mesmo tratamento, tema que não é enfrentado na decisão. No final das contas, matérias que cobriam o pedido de desculpas feito pela atriz após a repercussão da entrevista (como a produzida pelo UOL) acabaram sendo removidas da ferramenta de busca juntamente com conteúdos caça-clique e tantos outros provenientes de sites já condenados pelo próprio TJRJ e pelo TSE por espalhar desinformação.

Continuaremos a acompanhar esse e outros casos que envolvem o debate sobre liberdade de expressão e responsabilidade nas redes.

Para quem quiser saber mais, a decisão do caso pode ser lida aqui.

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