O declínio do terceiro lugar

Leia a coluna da semana de Ronaldo Lemos para Folha de S.Paulo.

publicado em

5 de julho de 2023

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Em crise, ele é o espaço onde as diferenças são toleradas em nome do convívio

Uma das tragédias contemporâneas é o chamado “declínio do terceiro lugar”. A ideia é simples e poderosa. A sociedade é constituída de lugares de convívio humano. O primeiro lugar é a nossa casa. O segundo é o trabalho. Já o terceiro lugar é o conjunto de espaços privados ou públicos em que encontramos pessoas com os quais não necessariamente temos vínculos: cafés, clubes, bibliotecas, parques, livrarias, igrejas, praças e assim por diante.

O importante é que seja um lugar aberto em que as pessoas possam se conectar entre si, com situações desconhecidas ou imprevisíveis, ou ainda, unidas por interesses ou atividades compartilhadas.

O terceiro lugar é onde ocorre uma espécie de laboratório cívico acidental, onde as diferenças são toleradas em nome do convívio. A ideia apareceu no livro do sociólogo Ray Oldenburg chamado “The Great Good Place”, publicado em 1989 (Oldenburg morreu no fim de 2022). Na obra, ele enfatiza que os terceiros lugares são essenciais para a criação de um senso de comunidade, para a construção de uma sociedade civil verdadeira e, em última análise, para a democracia.

Só que em 1989 Oldenburg não podia prever as complexidades do declínio atual do terceiro lugar, incluindo o papel da tecnologia nas nossas vidas. Apesar de ter potencial de formação de comunidades virtuais (a ponto de ser chamada por alguns de “o quarto lugar”), a maior parte dos produtos tecnológicos acaba gerando mais individualismo. É só pensar nos óculos de realidade virtual da Apple, o Vision Pro. O aparelho tem potencial de isolar as pessoas dentro das próprias casas. Se o celular é uma força de afastamento das pessoas dentro de casa, imagine um computador colocado na cara de cada um.

Mas a tecnologia não é o único fator. Parte da crise do terceiro lugar é também de mudanças estruturais no primeiro e segundo lugares. Especialmente na pandemia a casa passou a se tornar para uma parcela da população também um lugar de trabalho, o que tirou parte das pessoas das ruas da cidade. Além disso, a facilidade de comprar online está esvaziando centros urbanos.

Uma das experiências mais aterrorizantes é assistir aos vídeos do documentarista Dan Bell no YouTube. Sua série “Dead Mall” (Shoppings Mortos) é pior que muitos filmes de horror. Mostra shoppings gigantescos fechados, muitos deles novíssimos ou recém-inaugurados. Bell passeia pelo interior desses espaços, totalmente vazios, funcionando como um mau presságio.

No Brasil, o desafio dos terceiros lugares é ainda maior. Com uma sociedade dividida por múltiplos fatores, econômicos e sociais, vivemos cheios de terceiros lugares falsos. Um terceiro lugar verdadeiro precisa ser neutro (ninguém tem a obrigação de estar lá), nivelador (status não determina a entrada), a conversa é a chave do convívio (e não o comércio), é aberto a todos, tem raízes em comunidades locais, e assim por diante.

É claro que o Brasil tem vivido mudanças nas dinâmicas sociais nos últimos anos, como o renascimento do carnaval de rua ou o crescimento das igrejas neopentecostais. Em um contexto em que o individualismo puxado pela tecnologia prevalece, o Brasil poderia assumir um papel de proteção e reinvenção dos 3º lugares contra o desaparecimento ou a cooptação. Essa me parece uma ambição (ou utopia) saudável.


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