O que pode vir após Justiça proibir a exclusão de post de Eduardo Bolsonaro

Coluna de Carlos Affonso Souza publicada no UOL

publicado em

2 de julho de 2021

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Imagine um mundo em que nada poderia sair da internet sem ordem judicial. As redes sociais não poderiam agir proativamente para remover conteúdos ofensivos. Um mundo em que mesmo sendo denunciada por outros usuários, o provedor tivesse que recorrer ao Poder Judiciário para tentar excluir uma simples publicação. Nesse mundo, a única exceção que existiria fora desse mecanismo bizantino seria a exposição indevida de conteúdo íntimo.

Esse mundo existe na decisão proferida pela 4ª Turma Civil do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). O Tribunal condenou o Facebook a restaurar uma publicação que havia sido excluída, de autoria do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e condenou a empresa a pagar ao político uma indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil.

De qual publicação estamos falando?

A revista Época fez uma matéria em que um jornalista se fez passar por paciente da psicóloga e esposa de Eduardo Bolsonaro, Heloísa Wolf, buscando assim obter informações sobre o político. A repercussão da matéria foi bastante negativa, gerando inclusive um pedido de desculpas por parte do Conselho Editorial do Grupo Globo e mudanças na editoria da revista.

O deputado postou então em redes sociais administradas pelo Facebook uma crítica aos jornalistas da Época, expondo fotos da diretora de redação e do editor-chefe da revista.

O que fez o Facebook?

O Facebook decidiu remover a publicação após receber denúncia de que a mesma estaria violando as regras da plataforma.

Pelo que consta da mensagem recebida pelo deputado (reproduzida abaixo), a remoção teria ocorrido por uso de imagem de terceiros sem autorização.

Eduardo Bolsonaro processou então o Facebook para que a sua publicação fosse reativada nas redes sociais, pedindo ainda que a empresa fosse condenada a pagar danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil Reais). O deputado argumentou que os seus comentários estariam protegidos pela liberdade de expressão.

O que decidiu o tribunal?

Em primeira instância, o TJDFT entendeu que o Facebook poderia sim aplicar as suas regras e remover a postagem de Eduardo Bolsonaro. O deputado recorreu e, em sede de apelação, a 4ª Turma Civil do Tribunal determinou não apenas o retorno da publicação, como também a condenação do provedor por danos morais.

A ementa (síntese) da decisão ficou assim: “Apelação cível. Ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos morais. Provedor de serviços de internet. Rede social ‘Facebook’. Remoção de conteúdo. Violação do devido processo legal. Ato de censura e controle do exercício dos direitos individuais fundamentais. Ato ilícito configurado. Restabelecimento da publicação. Danos morais. Pessoa de imagem pública. Repercussão negativa à sua imagem. Apelação conhecida e provida.”

Pela ordem, senhor presidente!

Vale botar os pingos nos is. Os tribunais brasileiros podem ser acionados caso os usuários de redes sociais e demais aplicações se sintam prejudicados pela moderação de conteúdo e de contas realizadas pelos provedores a partir de suas próprias regras.

Os termos de uso das plataformas não são ilegais (são contratos de adesão), nem implicam em censura a priori. Mas também não existe nada de errado em o deputado Eduardo Bolsonaro buscar uma medida judicial caso entenda que essas regras foram aplicadas de forma abusiva, errônea e em descompasso com as leis nacionais.

O resultado da decisão em si, que manda voltar ao ar a postagem e condena o provedor de aplicações também não é nenhuma novidade.

Os tribunais nacionais contam com centenas de decisões que ora confirmam a moderação feita pelas plataformas, ora revertem as decisões das empresas (não raramente também condenando os provedores ao pagamento de indenizações por danos materiais e/ou morais).

Por que essa decisão é importante?

O que chama atenção no caso não é o resultado dela, mas como se chegou até lá. Para o tribunal, o Facebook deve ser responsabilizado porque removeu a publicação do deputado sem provocar o Poder Judiciário, aplicando suas próprias regras (e de modo pouco transparente). Aqui vale prestar atenção porque, se a moda pega, vai faltar juiz para tanta ação.

A tradição cartorial brasileira tem sono leve. Não custa muito para ela despertar e burocratizar atividades que poderiam ser bem mais simples.

Nesse caso, de modo ainda mais preocupante, a obrigação de se recorrer ao Judiciário nem mesmo protege mais os direitos dos usuários, já que conteúdos danosos vão permanecer no ar enquanto algum advogado de empresa vai caçar uma liminar.

As regras das plataformas podem ser vistas como medidas de primeiros socorros quando algo dá errado.

Redes sociais deveriam servir para conectar as pessoas, mas também podem servir para a disseminação de discursos ilícitos e danosos. Nesses casos, ter regras (e processos) claros sobre como o provedor pode agir é fundamental.

A decisão não apenas reconhece que o processo adotado pelo Facebook ao remover o conteúdo foi pouco transparente, como também anula qualquer possibilidade da empresa excluir a publicação sem antes buscar o Judiciário.

Conforme consta da própria decisão:

“Quem se julgar prejudicado deverá provocar o Poder Judiciário, justiça comum ou juizado especial, que fará a remoção ou não do conteúdo. A partir do recebimento da determinação judicial, e o provedor, possuindo acesso ou contato com o usuário, comunicará a razão da indisponibilização da postagem, bem como prestará as informações a respeito dessa ordem judicial, como o foro, o juízo, a parte requerente, etc.”

O que diz o Marco Civil da Internet?

O sistema brasileiro, desenhado no Marco Civil da Internet, protege a liberdade de iniciativa, a autonomia privada e a tutela de direitos. Os provedores podem criar suas regras, promover a sua aplicação e, em caso de abusos e ilícitos, resta ao Poder Judiciário a última palavra, aplicando as leis nacionais.

O TJDFT interpretou o Marco Civil da Internet como sendo uma lei que obriga os provedores a só removerem conteúdos depois de uma ordem judicial. Essa linha de entendimento já apareceu também com algum destaque no TJSP. Acontece que em nenhum momento o texto do Marco Civil determina essa vinculação.

O que diz o Marco Civil da Internet é que provedores de aplicações apenas serão responsabilizados por conteúdo de seus usuários ou de terceiros em geral caso não venham a cumprir a ordem judicial que obriga a sua remoção.

Mas isso não significa que os provedores estão de mãos atadas e não precisam fazer nada até que venha a ordem judicial. Muito pelo contrário, até como uma forma de zelar pelos direitos de seus usuários, deve o provedor atuar na moderação de conteúdo e de contas.

Qual é o problema de se judicializar a remoção de conteúdo?

O mundo todo caminha na direção de se aperfeiçoar os processos de moderação de conteúdo, inclusive criando iniciativas regulatórias que incentivem uma moderação mais ativa e efetiva.

O Brasil, se prevalecer a interpretação do TJDFT, vai no sentido contrário, mandando tudo para o Judiciário. A única exceção reconhecida pelo tribunal seria a divulgação de conteúdo íntimo. Nesse caso, havendo denúncia, o provedor poderia agir e remover a publicação.

O cenário gerado pela decisão do TJDFT acaba dificultando a remoção de qualquer outro tipo de conteúdo. O Poder Judiciário acaba virando o Posto Ipiranga da moderação de contas e de conteúdo.

A postagem parece discurso de ódio? Se quiser remover tem que ir no Poder Judiciário. Viola a propriedade intelectual de terceiros? Tem que ir no Poder Judiciário. É desinformação, propaganda de tratamento precoce contra a covid-19 sem comprovação científica ou discurso antivacina? Poder Judiciário.

O que vem pela frente?

As plataformas têm um longo caminho a percorrer para melhorar a forma pela qual realizam a moderação de conteúdo. Os processos ainda são pouco transparentes, confusos e incoerentes. Mas é aperfeiçoando a moderação de conteúdo, e não proibindo a mesma e fazendo tudo passar pelo Judiciário, que vamos melhorar a internet e as aplicações que usamos todos os dias.

Vale lembrar que o governo federal vem ensaiando publicar um decreto que restringe bastante as medidas de moderação de contas e de conteúdos por uma série de empresas, de redes sociais a de meios de pagamento. A decisão do TJDFT consegue ser ainda mais limitadora do que as regras do eventual decreto.

No front judicial, é provável que a decisão seja objeto de recurso especial para o STJ. Vai ser importante acompanhar como o tema evolui, até porque no Supremo Tribunal Federal (STF) existe também uma ação que discute a constitucionalidade do próprio desenho do regime de responsabilização de provedores gerado pelo Marco Civil da Internet.

Até aqui a decisão do TJDFT é um ponto fora da curva, que vem a somar com algumas outras do TJSP.

De modo majoritário, o Judiciário brasileiro vem entendendo que provedores podem sim moderar contas e conteúdos dentro dos limites traçados por suas regras e que cabe ao mesmo Judiciário atuar quando esse processo de moderação gerar condutas abusivas ou ilícitas.

Será que isso vai mudar? Pergunta lá no Poder Judiciário.

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