Protestos no Nepal não são a Primavera Árabe 2.0 ou uma ‘revolução da GenZ’

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

10 de setembro de 2025

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Protestos no Nepal, inspirados por redes sociais, derrubaram o governo, mas não são equivalentes à Primavera Árabe

Qual é a primeira imagem que surge na sua mente quando alguém fala sobre a Primavera Árabe? Para mim é a foto de um egípcio segurando um papelão no qual se lê “Facebook” escrito em letras garrafais. Poderia estar escrito “liberdade”, “justiça” ou “democracia”, mas a palavra escolhida para passar a mensagem foi o nome de uma grande empresa de tecnologia.

Quase quinze anos depois dos movimentos que ficaram conhecidos como a Primavera Árabe, as imagens que chegam do Nepal contam uma história repleta de familiaridades. A tecnologia está de novo no centro dos protestos. A juventude se organizou pelas plataformas digitais e foi para as ruas derrubar o governo. O estopim, que se somou à situação de desemprego, corrupção e estagnação econômica, foi o bloqueio de algumas das principais redes sociais.

Assim como aconteceu com a Primavera Árabe, rapidamente rotulada como uma “revolução da Internet”, os protestos que derrubaram o governo no Nepal já aparecem como uma “revolução da geração Z”, intensamente marcada pelo papel das redes sociais. É preciso mergulhar um pouco mais fundo no contexto do Nepal, e rememorar alguns elementos e lições da Primavera Árabe, para melhor compreender o que está acontecendo do outro lado do mundo e por que, no final das contas, o Nepal não é uma Primavera Árabe 2.0.

Tão longe, tão perto

Existem paralelos entre a Primavera Árabe e as manifestações no Nepal. Ambos os movimentos nasceram da frustração acumulada em sociedades marcadas pela estagnação econômica, nas quais a juventude não enxergava perspectivas de futuro diante de um cenário de corrupção endêmica, elites políticas isoladas e instituições frágeis. Em ambos os casos, as redes sociais foram o canal de encontro, a praça pública improvisada onde descontentamentos individuais se transformaram em ação coletiva.

Mas há diferenças cruciais. Enquanto a Primavera Árabe enfrentava regimes autoritários consolidados, o Nepal é uma democracia jovem e marcada por sucessivas crises de governabilidade. Isso fez com que o custo da repressão fosse mais alto para o governo: ao contabilizar dezenas de mortos em poucos dias, o primeiro-ministro acabou renunciando. A repressão no Cairo ou em Túnis buscava garantir a sobrevivência de regimes vitalícios; em Katmandu, ela acelerou a queda de um governo já fragilizado. Outro contraste está na escala: a Primavera Árabe se espalhou como um rastilho de pólvora pela região, derrubando líderes e inspirando movimentos do Magrebe ao Golfo. O Nepal, por ora, é um caso isolado, embora observado com atenção por seus vizinhos.

E talvez a maior diferença resida na identidade do movimento. Em 2011, falava-se no “povo” contra os regimes. A narrativa era ampla, popular, sem fronteiras geracionais tão marcadas. Em 2025, pelo menos no início, os protestos foram marcados pelo protagonismo da Geração Z.

Seria fácil dizer que os protestos no Nepal são um conflito geracional, de jovens libertários contra velhos políticos conservadores, que não entendem como funciona a tecnologia. Mas existe uma novidade na movimentação que varreu o Nepal: não estamos mais em 2011 e um dos gatilhos para a revolta é justamente o exibicionismo dos políticos (e principalmente dos seus filhos) nas redes sociais. É como se a cultura de ostentação e de influência nas redes tivesse batido contra uma parede e encontrado uma audiência que não estava mais disposta a curtir e compartilhar a boa vida alheia.

Das redes para as ruas, de novo

Um dos aspectos mais interessantes dos protestos no Nepal é a forma como símbolos da cultura pop e da Internet saíram das telas e apareceram nas ruas. Essa transposição não é inédita. Na invasão do Capitólio dos Estados Unidos, em 2021, entre bandeiras de Trump e slogans tradicionais estava também o estandarte verde do chamado “Kekistão”, um meme da internet transformado em símbolo político. O que parecia piada de fórum online virou marca visual de um movimento extremista com efeitos reais sobre a democracia norte-americana.

Internet, música e política também andam lado-a-lado. Não faz muito tempo que os fãs de K-pop mostraram sua força política ao sabotar um comício de Donald Trump em 2020. Mobilizados online, fãs reservaram ingressos para o evento e simplesmente não apareceram, deixando espaços vazios em uma ocasião que deveria exibir apoio massivo. Foi uma ação tipicamente digital que, no entanto, produziu um efeito palpável fora das telas.

No Nepal, a apropriação do anime One Piece segue a mesma lógica de transbordamento. A bandeira dos Straw Hat Pirates não ficou restrita a avatares ou memes: foi erguida nas ruas e estampada em cartazes como emblema de resistência. O gesto mostra como a política contemporânea passa pela cultura da rede, que sai dos feeds para se converter em linguagem de protesto, dialogando com um repertório cultural partilhado por milhões de jovens ao redor do mundo.

Quanto mais redes sociais, mais democracia?

A década de 2010 começou com a Primavera Árabe e terminou com os escândalos de manipulação de dados pessoais para fins eleitorais. O juízo sobre o papel das redes sociais ao longo desse período não poderia ter sido mais pendular. Em 2011 a Internet estava salvando as democracias, ao passo que a partir de 2016 ela estava corroendo os seus alicerces com desinformação. O saldo dos anos 20 permanece em aberto.

Será que os movimentos no Nepal vão ajudar a mover os monteiros? Os protestos não se organizaram apesar das redes, mas por causa delas. Foi ao tentar bloqueá-las que o governo acelerou sua própria queda.

No contraste entre 2011 e 2025, ninguém mais nega o poder político das redes sociais – basta ver as movimentações de Elon Musk escolhendo favoritos e inimigos no cenário político de diferentes países – ou mesmo a sua importância no xadrez geopolítico, como comprova a pressão para venda do TikTok nos Estados Unidos. Esses elementos não existiam em 2011 e ajudam a colocar o papel das redes em novo foco.

Depois do verão chega a primavera

A Primavera Árabe terminou com contrarrevoluções, guerras civis e regimes novamente autoritários. A promessa de liberdade se transformou, em muitos países, em frustração ou tragédia. Essa lembrança paira sobre Katmandu, especialmente dado os contornos violentos dos protestos e o número de mortes resultantes dos enfrentamentos. A história ainda está por ser contada no Nepal, que, em pleno verão, ensaia a construção de uma outra primavera.

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