Redes sociais não são opinião pública

Coluna de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo

publicado em

4 de março de 2019

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Confundir timeline de rede social com a opinião pública é um erro crasso

As redes sociais se tornaram um fator determinante para a tomada de decisão por parte do governo, como mostra uma série de episódios recentes.

Um exemplo foi a queda vertiginosa do ministro Gustavo Bebianno, acossado por uma forte campanha online.

Mais recentemente, o revés do ministro Sergio Moro ao afastar a cientista política Ilona Szabó do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária —depois de tê-la pessoalmente nomeado— atribuindo a decisão à “repercussão negativa entre certos segmentos”.

Esses “certos segmentos” são justamente a internet e as redes sociais. Confundir timeline de rede social com a opinião pública é um erro crasso. Infelizmente, as redes sociais hoje estão tomadas por robôs, fantoches, sockpuppets e outros personagens que recebem dinheiro para se manifestar de forma coordenada.

Essa prática nos Estados Unidos tem apelido: astroturfing. O nome se refere a uma marca de grama artificial que, de tão bem-feita, parece com a verdadeira. Para quem olha de longe, parece um gramado natural. Para quem olha de perto, vê que é plástico tingido fabricado industrialmente.

Muitas decisões estão sendo tomadas hoje com base em plástico tingido. Por menos de R$ 1.000, é possível pagar uma empresa para subir um “trending topic” em uma rede social. Essa prática tem sido usada com frequência no Brasil.

Muitos dos tópicos que sobem para o primeiro lugar no país acabam, “coincidentemente”, aparecendo em primeiro lugar também em países como Bahrein, São Tomé e Príncipe e Vietnã.

Por exemplo, a hashtag #AbortoéCrime —em português— já apareceu nos primeiros tópicos de Belarus, Ucrânia e Vietnã. Isso significa que tem alguém pagando para que robôs e outros personagens similares manipulem o que se discute na internet.

É claro que nem tudo é artificial. Há pessoas que pensam daquela forma. E há pessoas que, ao serem repetidamente expostas a discursos comprados, passam a repeti-lo por conta própria. Essa é a própria definição de propaganda.

Com isso, infelizmente, a esfera pública na internet brasileira está à venda. Essa é uma nova modalidade de corrupção. Se antes era possível comprar deputados, senadores, governadores ou presidentes, agora é possível comprar a aparência de “opinião pública”.

Quem tem dinheiro hoje consegue adquirir o poder computacional necessário para manipular o debate público, dando a impressão de que um assunto está “na boca do povo”. E, com isso, interferir em decisões públicas.

Em algumas redes sociais esse tipo de ação custa muito pouco. Em outras, custa muito. Em ambos os casos, tem gente disposta a pagar por isso. Sempre de forma oculta, sem rastro ou responsabilidade.

Quem governa por meio de redes sociais paga um preço alto: acaba sendo governado por elas.

Hoje, quem de fato “governa” o debate na internet é um conjunto de forças obscuras, que conseguem inflar sua opinião como se fosse opinião pública e, com isso, influenciar decisões governamentais.

Essa é uma das questões mais importantes do nosso tempo. Corremos o risco de que governos legitimamente eleitos pela maioria se tornem fantoches de grupos organizados. Ou pior: fantoches de outros fantoches da internet.

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