Relator descaracteriza MP que atenderia quem não tem certificado digital

Coluna semanal de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo

publicado em

4 de agosto de 2020

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Texto foi desfigurado para, em vez de reduzir a aplicação do certificado, aumentá-la

O Brasil tem avançado em transformação digital no âmbito do governo federal. Um esforço coordenado a partir do Ministério da Economia permitiu a criação do portal Gov.Br, que já digitalizou mais de 800 serviços públicos que antes eram prestados de forma analógica e em papel.

Gov.Br segue a lição dos países mais avançados em GovTech, que centralizam a prestação dos serviços públicos digitalmente em um único lugar, gerando eficiência e reduzindo burocracia.

Esse esforço tem gerado resultados. A ONU publicou recentemente um novo ranking de Governo Eletrônico. No topo, os três países mais bem posicionados são a Dinamarca, a Coreia do Sul e a Estônia. O Brasil avançou posições. Ocupamos agora a 54ª posição, lugar ainda muito ruim para quem tem a quarta maior população com acesso à internet do planeta.

Uma peça-chave do plano do governo federal de digitalizar serviços públicos, no entanto, está sob ataque. Ou melhor, contra-ataque. Essa peça é a Medida Provisória 983 que cria um novo regime para as assinaturas eletrônicas. Hoje o país todo é refém do vergonhoso certificado digital. Aquele que você precisa pagar até R$ 200 por ano para ter um, emitido por entidades autorizadas. Sem ele, vários serviços públicos ficam inacessíveis, como o login na Receita Federal. Apenas 5 milhões de pessoas têm um certificado digital hoje, menos de 2% da população.

A Medida Provisória 983 quis fazer política pública para atender aos outros 98% que não possuem um certificado digital e nunca terão por causa do preço. Criou um regime de assinaturas digitais em três níveis, seguindo o padrão adotado na União Europeia, permitindo assim que outras modalidades de assinatura sejam aceitas para o cidadão acessar serviços públicos digitalmente, sem precisar pagar R$ 200 por ano.

Assim, permitiria o uso de tecnologias mais modernas para reconhecer a identidade e assinatura de uma pessoa (o certificado digital é tecnologia adotada no Brasil desde 2001!), com custo zero para o cidadão.

Só que a MP, ao chegar no Congresso Nacional, foi totalmente descaracterizada. O relator do projeto na Câmara conseguiu o inimaginável. Desfigurou o texto para, em vez de reduzir a aplicação do Certificado Digital, aumentá-la.

Sob o falso argumento de “segurança e estabilidade jurídica”, passou a exigir novos usos obrigatórios para o certificado digital, como transferência de veículos, registro de atos societários nas juntas comerciais e qualquer serviço público que permita movimentação acima de seis salários mínimos.

Com isso, o Brasil mostra que é um dos poucos países que consegue usar a tecnologia para aumentar a burocracia e não para diminui-la.

A Coreia do Sul, que aparece no topo do ranking a ONU em governo eletrônico, há pouco ganhou destaque internacional positivo justamente por aposentar sua versão local de certificado digital. Afinal, nos países asiáticos a vergonha é um dos sentimentos mais temidos que um indivíduo pode suportar. Ela acontece quando alguém faz algo incompreensível e injustificável.

Modificar a MP 983 para aumentar o nível já intoleravelmente alto de burocracia no país faz parte dessa categoria, é algo incompreensível e injustificável.

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