Remover ou não remover conteúdo falso: eis a questão?

Artigo de Julia Iunes e Amanda Leal

publicado em

2 de junho de 2020

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Nas últimas semanas, plataformas de redes sociais como o Twitter, Facebook e Instagram adotaram a política de remoção de notícias falsas, especialmente em temas relativos ao coronavírus. Os episódios ganharam destaque devido à remoção de postagens de autoridades públicas, como o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro e o líder do Irã, o aiatolá Ali Khamenei.

A justificativa para casos como esses seria a mudança nos termos de uso das plataformas, que, neste momento de pandemia, passaram a incluir novas hipóteses de remoção, no intuito de evitar a disseminação de conteúdos inverídicos que possam representar um risco para a saúde das pessoas. O Twitter, por exemplo, definiu alguns parâmetros para a remoção de posts que contenham: Negação das recomendações de autoridades de saúde locais ou globais; Descrição de supostas curas alegadas para COVID-19; Descrição de tratamentos prejudiciais ou medidas de proteção ineficazes e Negação de fatos científicos estabelecidos.

Certos pesquisadores do tema alegam que, para casos como estes, a remoção de conteúdo seria “uma restrição adequada, necessária e proporcional para proteger a saúde e vida das pessoas em um cenário de pandemia”. Por outro lado, outros especialistas também levantam uma preocupação legítima com a censura que pode ser levada a cabo por essas plataformas, os critérios que orientam esse tipo de decisão e a necessidade de prover transparência a esse processo.

Existe, portanto, um aparente conflito de direitos: de um lado, a liberdade de expressão dos usuários em compartilharem suas visões, ainda que minoritárias, sobre o tema e, de outro, a saúde pública, bem jurídico que pode ser severamente impactado pela divulgação de informações inverídicas acerca da doença. Neste cenário, seja qual for a decisão tomada — manter ou remover o conteúdo do ar — sempre se correrá o risco de afronta a um dos direitos em jogo.

O tema se torna ainda mais sensível quando se trata de postagens veiculadas por autoridades políticas, existindo, neste caso, ainda outros bens jurídicos afetados, como, por exemplo, o interesse público em se dar publicidade a pronunciamentos de um Presidente da República. E, consequentemente, o possível dano ao se “apagar da história” os posicionamentos de figuras políticas.

Diante do dilema causado pela remoção de conteúdo, será que não existem outras alternativas para o combate à desinformação online, que possam amenizar esse impasse?

Parte da resposta já foi dada e vem sendo colocada em prática pelas próprias plataformas. No dia 11 de maio, o Presidente Jair Bolsonaro teve uma publicação nos “stories” identificado como informação falsa pelo Instagram após checagem da Agência Lupa, por trazer dados incorretos sobre o novo coronavírus. Ainda, em episódio recente, o Instagram identificou que uma postagem da Secretária da Cultura, Regina Duarte, era “parcialmente falsa”. No entanto, ao invés de simplesmente retirar o conteúdo, a rede social manteve o post no ar, adicionando um marcador que permite aos usuários acessarem a publicação após serem avisados sobre o grau de veracidade da mesma.

A nova ferramenta não apenas notifica os usuários sobre a veracidade dos conteúdos, como também apresenta uma justificativa do porquê determinada informação é apontada como falsa e qual seria a versão correta indicada pela agência de checagem de fatos, que analisou o post. No segundo caso citado, a Secretária da Cultura postou que o medicamento hidroxicloroquina teria sido liberado pela Anvisa para tratamento da covid-19. Ao identificar o equívoco da mensagem, a plataforma então sinalizou na própria postagem que a autorização concedida pela Anvisa foi para a realização de pesquisas com a substância e não para o tratamento da doença, priorizando a educação digital dos usuários para o pensamento crítico e acesso à informação correta.

Outras plataformas também vêm testando novas ferramentas, que investem em alternativas de conscientização dos usuários. O Facebook, por exemplo, passou a tomar algumas medidas, como notificar os usuários que interagiram com boatos sobre o coronavírus, encaminhando um link para informações oficiais no site da OMS.

Qual a vantagem dessas estratégias sobre as práticas de remoção de conteúdo?

Essas iniciativas parecem seguir o “caminho do meio”, privilegiando tanto a liberdade de expressão, quanto o interesse público em se manter um ambiente informacional saudável nas redes. De quebra, investem em um terceiro direito: a educação digital dos envolvidos na cadeia de compartilhamento de informação, desde o autor até os usuários que compartilham e disseminam a informação e todos os que consumiram este conteúdo. E evitam os riscos de censura, inevitavelmente presentes quando se opta pela remoção do conteúdo.

Mas no que consiste a “educação digital” e por que a alfabetização midiática é a alternativa mais eficiente no combate à desinformação?

O termo “alfabetização” é amplamente conhecido como o processo por meio do qual aprendemos a ler e a escrever, ou seja, a utilizar o sistema ortográfico, tão essencial para a comunicação moderna. Nota-se que, assim como a linguagem escrita foi um divisor de águas na história da humanidade, as tecnologias da informação e mídias sociais também podem ser consideradas como um novo sistema de comunicação para o qual, inclusive, se exige igualmente um processo específico de aprendizagem.

No entanto, o uso intuitivo dessas ferramentas permitiu a adoção dessa nova linguagem de forma massiva e repentina, sem que nos déssemos conta da importância de se investir em uma aprendizagem adequada do sistema digital, principalmente para as pessoas que não cresceram diretamente em contato com essa nova linguagem.

Neste cenário, a UNESCO cunhou o conceito de alfabetização midiática e informacional (AMI), que parte da necessidade de se desenvolver habilidades específicas para o exercício da liberdade de expressão e do direito ao acesso à informação nos meios digitais. Resumidamente, a AMI pode ser definida pela conjunção das seguintes habilidades:

  1. Compreender o papel e as funções das mídias e de outros provedores de informação nas sociedades democráticas e as condições nas quais essas funções possam ser realizadas;
  2. Reconhecer e articular sua necessidade informacional para poder localizar, acessar, extrair e organizar informações relevantes;
  3. Avaliar com senso crítico, em termos de autoria, credibilidade e finalidade, o conteúdo na internet;
  4. Comunicar sua compreensão sobre o conhecimento criado, com ética e responsabilidade, no meio mais apropriado;
  5. Aplicar as habilidades em tecnologia da informação e comunicação (TIC) para processar informação e produzir conteúdo, engajando-se nas mídias com liberdade de expressão, diálogo intercultural e participação democrática.

A conjunção dessas competências definidas como alfabetização midiática informacional, para a qual utilizamos “educação digital” como sinônimo, possibilitaria aos usuários o discernimento em relação ao consumo de informações falsas e o fortalecimento de uma cultura de responsabilidade na circulação das informações nas plataformas de redes sociais. Estes pontos são extremamente relevantes já que, mesmo que as plataformas desenvolvam mecanismos de combate à desinformação — seja de remoção ou alerta junto a conteúdos com informações não verificáveis — é impossível que as empresas responsáveis pelas plataformas exerçam este filtro sobre todos os conteúdos que circulam pela rede.

O uso extensivo de plataformas online no dia-a-dia da sociedade parece ser um caminho sem volta. Portanto, a alternativa mais viável para o combate à desinformação preservando a liberdade de expressão e evitando “práticas de remoção que possam levar à censura de conteúdos”, de maneira eficiente e sustentável, passa invariavelmente pela educação digital.

A necessidade de uma abordagem multissetorial para o combate à desinformação e desenvolvimento das habilidades de educação digital

Em que pese a existência de algumas iniciativas por parte das plataformas, o problema da desinformação online não comporta respostas simples, tampouco ações solitárias. Algumas plataformas já perceberam isso e, inclusive, a abordagem multissetorial não seria uma novidade para elas. Exemplo disso é o lançamento recente de um “Oversight Board” (Conselho de Supervisão), painel independente com especialistas mundiais para decidir em última instância a manutenção ou remoção de conteúdos no Facebook e no Instagram. Além disso, a empresa vem desenvolvendo um trabalho em conjunto com agências independentes de checagem de fatos, que identificam conteúdos com desinformação e apontam a história verdadeira por trás das notícias falsas. No Instagram, este trabalho foi demonstrado acima, no caso do post rotulado como “parcialmente falso”. Dito isto, o ideal é que o combate à desinformação online seja enfrentado por meio de uma atuação multissetorial e que estratégias de educação digital sejam desenvolvidas e aplicadas conjuntamente por governos, plataformas, organizações da sociedade civil e pelos próprios cidadãos usuários das redes.

O exemplo da União Europeia

Iniciativa paradigmática neste sentido está sendo implementada pela União Europeia. Ao instituir um Código de Conduta para combate à Desinformação, o “Code of Practice on Disinformation”, a Comissão da UE estabeleceu, juntamente a plataformas como Facebook, Google e Twitter, diversos compromissos, dentre eles, o desenvolvimento de ferramentas de alfabetização digital e empoderamento cidadão.

Os deveres consistem em: i) investir em produtos, tecnologias e programas para ajudar as pessoas a tomar decisões informadas quando encontrarem notícias online que possam ser falsas; ii) desenvolver e implementar indicadores eficazes de confiabilidade, em colaboração com o ecossistema de notícias; iii) investir em meios tecnológicos para priorizar informações relevantes, autênticas e oficiais em pesquisas, feeds ou outros canais de distribuição classificados automaticamente; iv) investir em recursos e ferramentas que facilitam as pessoas a encontrar diversas perspectivas sobre tópicos de interesse público.

O documento também fala da necessidade em se formar parcerias com a sociedade civil, governos, instituições educacionais e outras partes interessadas para apoiar os esforços que visam melhorar o pensamento crítico e a alfabetização em mídia digital.

Mas como anda o debate sobre educação digital no Brasil?

Nossa pesquisa em andamento, e que será lançada no segundo semestre de 2020, revela que há uma carência de abordagens desse tipo no Brasil. A iniciativa brasileira que mais se assemelha ao exemplo da União Europeia seria o Programa de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral — TSE, que estabelece como eixos a alfabetização midiática e a identificação e checagem de informação. No entanto, não existem informações concretas sobre que plataformas teriam aderido ao programa e quais efetivamente seriam os objetivos, orientações e compromissos assumidos.

No nível federal, também não existe nenhuma lei em vigor que aborde o tema da alfabetização digital. Olhando para os projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional que tratam de desinformação online, também não parece existir grande entusiasmo para que abordagens educativas sejam implementadas como forma de solução do problema. Na realidade, a grande maioria dos projetos de lei em trâmite adotam o caminho da criminalização de condutas, ao invés de propostas de conscientização cidadã.

Neste cenário, mostra-se mais do que necessária uma atuação conjunta de governos, plataformas e sociedade civil para a educação digital, com investimento em ferramentas de alfabetização digital, na linha do que já vem sendo indicado pela União Europeia e por organismos internacionais como a UNESCO. Os recentes acontecimentos de divulgação de notícias falsas sobre o coronavírus demonstram a necessidade e a importância do fortalecimento deste debate também aqui no Brasil.

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