Round 6′ bombou tráfego de dados, e isso expôs treta pelo controle da web

Coluna de Carlos Affonso de Souza no UOL

publicado em

6 de dezembro de 2021

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Alerta de spoiler! No primeiro episódio de Round 6 (ou “Squid Game”, como é chamado lá fora), o espectador é transportado para uma versão mortal do jogo infantil “batatinha frita 1, 2, 3”. Enquanto uma boneca gigante não está olhando para o campo em que se acumulam os jogadores, eles podem se mexer e tentar chegar ao outro lado em segurança. Quem se mexe depois da contagem, quando a boneca olha para frente, é morto na hora.

Fim do spoiler. A internet tem um princípio fundamental, conhecido como neutralidade da rede, que determina que os responsáveis pela comunicação não devem tratar diferentemente um pacote de dados por conta da sua origem, destino ou tipo. Esse princípio procura evitar que os provedores fiquem espiando o que estão transportando e resolvam tomar decisões sobre a entrega ou não de um pacote de dados ou resolvam prejudicar empresas concorrentes.

Esse mandamento de não discriminação de pacotes de dados inclusive virou lei no Brasil, já que a neutralidade da rede está prevista no Marco Civil da Internet, com algumas exceções, é claro. Você quer que os provedores impeçam o envio de spam, por exemplo, e para isso eles podem olhar o que estão transportando e filtrar o encaminhamento.

Nos Estados Unidos, o princípio da neutralidade da rede foi alvo de diversas regulações por parte da Federal Communications Agency e virou tema de uma intensa campanha popular quando foi ameaçado por alterações promovidas durante o governo Trump.

Mas por que estamos misturando neutralidade da rede com Round 6?

Porque a Coreia do Sul se tornou o mais recente campo de batalha sobre o princípio da neutralidade da rede, em um cabo de guerra legislativo e judicial que envolve os grandes provedores de acesso nacionais e provedores de conteúdo estrangeiros, como a Netflix, responsável pela produção e distribuição de Round 6.

Em jogo estão também o conceito de soberania digital e visões diferentes sobre desenvolvimento econômico.

Todo mundo já sabe que Round 6 é um sucesso global. Um relatório recentemente vazado indica que a série sul-coreana deve gerar US$ 891 milhões para a Netflix.

Mas o que acontece quando um conteúdo se torna tão popular que milhões e milhões de pessoas decidem acessar a plataforma de streaming para maratonar a série?

A resposta encontrada pelos provedores de acesso à internet sul-coreanos é que isso faz com que eles tenham que se virar nos trinta para garantir que todos os seus usuários possam assistir a série em alta qualidade. E que isso custa caro.

Quem vai pagar essa conta?

Os provedores dizem que tem que ser as plataformas de streaming que, por sua vez, dizem que essa é justamente a função dos provedores de acesso. Essa confusão dava uma série.

Quem tem razão?

Para começar a entender esse rolo é preciso conhecer um pouco do histórico de desenvolvimento econômico da Coreia do Sul. O país deve a sua ascensão nas últimas décadas ao crescimento de grandes conglomerados empresariais, chamados de chaebols, que são geralmente controlados por uma família. Esses verdadeiros campeões nacionais consolidaram a sua posição no mercado interno e se tornaram a cara da Coreia do Sul para o mundo.

Pensa em Samsung, LG e Hyundai que você começa a entender o papel que essas empresas representam. No campo das telecomunicações existe a SK, com forte atuação no setor de provimento de acesso à internet. Ela é peça central nessa disputa com a Netflix.

A pressão desses campeões nacionais sobre o governo não é brincadeira. Tanto assim que o Congresso sul-coreano, em 2020, chegou a aprovar uma lei que dava direito aos provedores de acesso de cobrar uma “taxa por serviços de rede” de provedores de conteúdo com mais de um milhão de usuários no país.

O fundamento foi garantir a estabilidade dos serviços de conexão, mas não faltou quem visse esse movimento como uma reação das empresas nacionais contra as grandes big techs estrangeiras.

Essa relação entre provedores de acesso locais e empresas estrangeiras já foi testada no Judiciário sul-coreano. Em julho de 2019 uma Corte de Seul decidiu que, dado o aumento de volume de acessos à Netflix, a plataforma de streaming devia efetuar um pagamento extra ao provedor de acesso SK Broadband. A empresa americana recorreu da decisão.

Agora, com o sucesso de Round 6, uma nova ação foi proposta para obrigar a Netflix a pagar pelo aumento de tráfego gerado. Em sua defesa, a empresa argumentou que está dedicada a produzir conteúdo audiovisual na Coreia do Sul e que suas séries, além de exportar cultura sul-coreana para o mundo, geram empregos no país.

De modo geral, o argumento contrário ao pagamento da taxa por serviços de rede na Coreia do Sul passa pela noção de que isso poderia levar os provedores de acesso a receber em dobro pela mesma atividade.

De um lado eles ficam com o pagamento mensal feito pelos seus clientes que querem usar a internet e visitar os sites que quiserem. De outro, eles passam a cobrar também dos sites que são mais popularmente acessados.

Ciente de que o mercado sul-coreano é cada vez mais estratégico, e que a relação com os provedores passa por um cenário regulatório bastante peculiar, a Netflix passou a investir em uma solução de hardware chamada Open Connect Appliances, que ajuda os provedores a rotear o tráfego de rede de forma mais barata e rápida.

A situação do Netflix na Coreia do Sul é não apenas um caso interessante para entender as relações entre Ocidente e Oriente, mas também para refletir sobre o debate global envolvendo o princípio da neutralidade da rede, especialmente quando a expansão de uma internet mais rápida, como o 5G, demanda investimentos do setor privado.

Para as empresas sul-coreanas, elas estariam fazendo todo o investimento em rede para gerar na ponta um lucro para as empresas (grande parte delas estrangeiras) que são o destino dos seus clientes.

A Coreia do Sul virou por tudo isso um capítulo importante na discussão global sobre neutralidade da rede. Por lá, com a nova regulação, nem todos os pacotes de dados que circulam na rede recebem, em regra, o mesmo tratamento.

Se a moda pega, sabe-se lá quais taxas extras podem começar a aparecer para que provedores possam levar seus clientes até os sites que eles queiram visitar.

Aqui estamos falando de uma disputa puramente comercial, é verdade, mas o estímulo à criação de exceções ao princípio da neutralidade da rede é sempre preocupante porque, na medida em que os pacotes que circulam na internet começam a ser carimbados de maneira diferente, essa é a ponta de lança para se institucionalizar mecanismos de censura, bloqueio e filtragem de conteúdos online.

De toda forma, assim como o protagonista de Round 6 teve que se desviar do olhar da boneca assassina no jogo batatinha frita 1, 2,3, a Netflix vai ter que arrumar um jeito de sair da alça de mira dos provedores de internet coreanos se quiser seguir em frente nesse jogo.

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