STF torna Marco Civil complexo ao criar ‘prateleiras de responsabilização’

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

29 de junho de 2025

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O STF decidiu sobre a responsabilidade das plataformas digitais no Marco Civil da Internet, introduzindo quatro categorias de responsabilização e incluindo IA na discussão

A decisão recente do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet foi anunciada como um marco para a regulação das plataformas digitais. O STF, talvez sem dizer isso com todas as letras, acabou também decidindo sobre inteligência artificial. Ao tratar de robôs e contas automatizadas, um problema das redes sociais, o tribunal trouxe os chatbots para a roda.

Quatro prateleiras de responsabilização

O novo modelo desenhado pelo STF distribui a responsabilidade das plataformas em quatro prateleiras.

A primeira trata dos conteúdos mais graves, como racismo e incitação à violência, e impõe um dever de cuidado. Nesses casos, a responsabilização da plataforma não é automática — ela só será acionada diante de uma falha sistêmica.

“Risco sistêmico” é um conceito importado do PL das fake news (PL 2630/2020), que acabou não sendo aprovado no Congresso. O tribunal também não indicou quem será responsável por declarar esse risco: o Judiciário ou alguma entidade do Executivo? A tese ficou aberta depois dos ministros terem debatido sobre o tema em plenário.

A segunda prateleira trata do regime de notificação e retirada. Agora, qualquer pessoa que se sinta lesada pode notificar uma plataforma — e, se ela não remover o conteúdo, poderá ser responsabilizada. Assim como o “risco sistêmico” poderá dar ensejo a ações civis públicas movidas para buscar responsabilizar as maiores plataformas por danos em grande escala, o regime de notificações não cumpridas abre as portas para ações individuais alegando que a não remoção do conteúdo imputado infringente causa dano. Até aqui esse modelo valia para situações excepcionais, como a publicação de cenas de sexo e nudez não consentidas. Agora ele ganhou cara de regra geral.

Como uma simples notificação pode gerar responsabilidade, é possível que plataformas prefiram derrubar conteúdos legítimos a correr o risco de serem acionadas judicialmente. Isso pode afetar a liberdade de expressão, especialmente em temas sensíveis, como política ou denúncias de irregularidades. Vamos esperar para ver como as plataformas vão reagir e se o número de remoções vai mesmo aumentar – e como isso poderá afetar discursos legítimos.

A terceira prateleira manteve a lógica do artigo 19 para crimes contra a honra, exigindo ordem judicial para remoção e responsabilização. Nesse ponto, o Supremo andou bem. Evitou abrir a porta para que figuras públicas usassem notificações extrajudiciais como forma de censura indireta contra a imprensa ou contra críticas legítimas.

Uma quarta prateleira presume a responsabilidade das empresas por anúncios e impulsionamentos pagos, além de robôs e chatbots. Essa inclusão é curiosa, na verdade, já que o tema que estava em julgamento no STF era a responsabilidade dos provedores por conteúdos de terceiros. Chatbots, no final das contas, é um conteúdo próprio de quem o disponibiliza. De qualquer forma, pode-se dizer que o Supremo acabou trazendo o debate sobre IA para a decisão, já que grande parte dos chatbots serve como ferramenta de interação com aplicações de IA.

Como respondem os marketplaces?

Ao lado dessas prateleiras, surgem outros elementos importantes. O STF determinou, por exemplo, que marketplaces — como OLX e Shopee — não estão mais protegidos pelo artigo 19. Eles passam a ser tratados sob a lógica do Código de Defesa do Consumidor (que determina, em regra, o regime de responsabilidade objetiva). Esse regime faz com que as empresas respondam independentemente de culpa. Chama atenção o fato de que, em outro trecho da tese, a decisão do Supremo diz que “não haverá responsabilidade objetiva na aplicação da tese aqui enunciada.” Seria então uma contradição na tese formulada pelo STF?

Já plataformas fechadas, como WhatsApp, e-mail e Zoom, foram explicitamente excluídas da aplicação direta da tese. Por outro lado, Instagram, TikTok, Wikipedia, Reclame Aqui e até sistemas de avaliação de restaurantes ou hotéis entram na nova regra.

O futuro da discussão

Para quem acompanhou de perto as 16 sessões que o STF levou para chegar ao resultado, fica a impressão de que, com todas as questões acima levantadas, essa foi fatalmente a via do meio encontrada pela Corte. Ficaram vencidos tanto os que defendiam que o regime do Marco Civil não fosse alterado – como os ministros Fachin, Mendonça e Nunes – bem como os que propunham uma mudança extrema, com responsabilidade automática das plataformas e inconstitucionalidade do artigo 19, como os Ministros Toffoli, Fux e Moraes.

Ao olhar para o futuro, depois de tantas idas e vindas nas discussões do plenário, o STF parece ter dado a resposta possível a partir dos posicionamentos no tribunal. Superada essa etapa, a bola está com o Congresso para voltar ao tema e procurar construir consenso, alterando ou confirmando as direções apresentadas pelo Supremo.

Até lá, será importante acompanhar como o modelo imposto pelo STF será aplicado na prática. O Brasil trocou um modelo simples de responsabilidade de plataformas por um bastante complexo. Decifrar quais regras valem para quais serviços e por quais tipos de conteúdos manterá os advogados e demais profissionais da área jurídica ocupados por um bom tempo.

 

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