Suprema Corte dos EUA pode mudar a internet

Leia a coluna da semana de Ronaldo Lemos para Folha de S.Paulo.

publicado em

2 de março de 2023

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Pais de jovem assassinada por terroristas em Paris pedem que Google seja responsabilizado por vídeos radicais postados no Youtube

Quem reclama de “ativismo judicial” no Brasil deveria dar uma olhada no caso Gonzalez vs. Google, que a Suprema Corte dos EUA está julgando. Esse caso pode literalmente mudar a história da internet tal qual a conhecemos. Ele pode revogar ou alterar significativamente um dos dispositivos legais que permitiram o crescimento acelerado (e desordenado) das empresas de internet nos EUA.

Trata-se da chamada Seção 230 da Lei da Decência nas Comunicações, existente desde de 1996. De acordo com esta seção da lei, os provedores de conteúdo e de hospedagem (como Google, Facebook e muitos outros) não podem ser legalmente responsabilizados pelas postagens dos seus usuários.

Esse trecho da lei criou uma imunidade enorme para as plataformas de conteúdo (que tem algumas poucas exceções). O usuário pode mentir, difamar e até postar conteúdo inflamatório radicalizado. A plataforma, no entanto, não pode ser processada por isso.

Tudo pode mudar agora por causa da família Gonzalez. Eles são pais de Nohemi Gonzalez, jovem que foi assassinada em 2015 na casa de shows Bataclan, em Paris. O argumento da família contra o Google é que os terroristas foram radicalizados assistindo a vídeos no Youtube. Os algoritmos da plataforma teriam selecionado especificamente vídeos radicais, que foram sendo oferecidos para os terroristas, até que eles partissem para ação.

A família Gonzalez argumenta que na época em que a Seção 230 foi formulada, não havia a capacidade de conteúdos serem selecionados por algoritmos. Por causa disso, as plataformas deveriam poder ser responsabilizadas hoje por conteúdos que promovem automaticamente.

Parece simples. Mas não é. A revogação da Seção 230 mira as grandes plataformas, mas pode atingir todas as iniciativas na rede, grandes e pequenas. Não por acaso representantes da Wikipedia entraram na ação pedindo fortemente para que a Suprema Corte mantenha a Seção 230 inalterada. Se ela for modificada, a própria Wikipedia pode ser responsabilizada por qualquer conteúdo postado nela. Com isso, tem a chance de se tornar inviável.

Muita gente vê a mudança na Seção 230 como uma forma de limitar o poder das plataformas de conteúdo. No entanto, na prática, o tiro pode sair pela culatra. Se as plataformas puderem ser processadas a cada conteúdo dos usuários, na prática, começarão a remover massivamente conteúdos arriscados. Na dúvida, o conteúdo sai, justamente para não gerar a possibilidade de processos e indenizações posteriores. E quem decide o que sai ou fica no ar? As próprias plataformas. Elas terão sua discricionariedade ampliada para arbitrar em primeiro lugar e último lugar o que deve sair ou ficar.

O caso nos EUA ilustra a importância do Marco Civil da Internet, nossa lei que trata do assunto no Brasil de forma diferente. De acordo com o Marco Civil, quem decide em última análise se um conteúdo deve ficar no ar ou não é o Poder Judiciário. A plataforma é responsabilizada na medida em que descumpre os comandos do Judiciário que, no Brasil, tem sua capacidade de atuação preservada para agir.

 

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