Caso PC Siqueira envolve outros crimes além da suposta pedofilia
Coluna semanal de Carlos Affonso de Souza no UOL.
publicado em
22 de junho de 2020
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O que acontece quando a moda do cancelamento, impulsionada pela cultura do exposed, atinge um youtuber conhecido tanto por suas opiniões fortes quanto por seus relatos sobre depressão e suicídio, envolve acusações sérias de pornografia infantil, levanta dúvidas sobre se os conteúdos vazados são verdadeiros ou fake e faz instaurar mais uma vez o tribunal da internet?
O caso envolvendo um vídeo e áudios vazados supostamente do youtuber PC Siqueira, nos quais o mesmo comentaria ter recebido fotos de uma menor de seis anos nua – enviadas pela própria mãe da criança – reúne todos os elementos acima e acabou mobilizando as redes sociais.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo confirmou que está investigando o caso, o que não impediu milhares de usuários das redes sociais de processar a denúncia, analisar as provas e julgar o caso. A questão não é nada simples e envolve a possível ocorrência de um crime grave. Enquanto os meios investigativos oficiais não se pronunciam, vale dar um passo atrás e refletir sobre o que aconteceu nos últimos dias e o que aprendemos até aqui.
1. Cancelamentos e “exposed” transformaram as redes sociais no crepúsculo dos ídolos
O caso do PC Siqueira é o encontro de dois rios que correm soltos nas redes: o de águas turvas, que esconde, oculta e bloqueia a pessoa cancelada, e o de águas claras, que mostra para quem quiser ver o que mora lá no fundo. Ou seria ao contrário? Será que as campanhas pelo cancelamento de uma celebridade, que tanto querem relegá-la às sombras, não acabam por jogar mais holofote em cima dela? Será que a cultura do “exposed”, ao trazer à luz tantas histórias graves e relatos corajosos, também não ofusca o debate ao incentivar o repúdio no mesmo volume de casos muito diferentes?
É difícil admitir que as coisas são complexas quando todos desejamos soluções fáceis. De certa maneira, a cultura do cancelamento é mais um produto da barulhenta transformação das redes sociais em tribunais de improviso. Tudo pode acontecer em um par de horas depois que a acusação é apresentada. Reunidos em plenário, centenas ou milhares decidem que a celebridade está banida dos seus respectivos afetos e, para tornar público e oficial, fazem subir a hashtag #fulanoisoverparty. A Justiça pode ser cruel.
A cultura do “exposed”, por outro lado, tem uma história recente mais sóbria. Brotando da mesma árvore que nos deu movimentos importantes como o #metoo, as séries de postagens que expõem casos de abusos vieram em boa hora para lembrar que não é não. Os alvos podem ser mais ou menos anônimos, porém algo diferente acontece quando o relato envolve uma celebridade e vem acompanhado de áudios vazados e “prints”.
Aqui a história vira uma novela, ou uma série cheia clímax de ação ou reviravoltas dramáticas. Primeiro veio o vídeo de um chat que supostamente envolvia o youtuber. Ele era culpado. Depois ele fez uma postagem no Instagram apontando inconsistências no vídeo. Agora ele era inocente. Depois vieram os áudios e tudo se tornou mais complicado.
Com uma parte da população trancada em casa e viciada em séries, não é difícil entender como a pessoa sai do Netflix, entra nas redes sociais e passa a tratar os casos que ali se desenrolam como se fosse mais um episódio da sua série dramática favorita. Só que do outro lado da tela não estão mais os atores que fazem assaltantes de banco espanhóis ou vikings com penteado hipster. Estamos falando de pessoas e de consequências reais.
2. Está cada vez mais fácil criar e acreditar em vídeos e áudios falsos
Mas será que o vídeo mostrando um chat envolvendo o YouTuber e os áudios em que ele confessa o crime são mesmo verdadeiros? Enquanto uma parte dos usuários das redes sociais tomou esses elementos como prova inconteste, outra parte se transformou em detetive virtual e foi atrás da possibilidade de manipulação das evidências.
O que não falta na internet são aplicativos para simular uma troca de mensagens. Existem aplicativos que imitam o ambiente do WhatsApp, do Instagram e do Messenger. Eles geralmente são anunciados como uma forma de pregar uma peça nos seus amigos ou para fazer paródias. Neles você escolhe o nome do destinatário, insere uma foto e, já dentro do ambiente do aplicativo, passa a escrever tanto as suas mensagens como as do suposto destinatário.
Basta depois fazer um print ou gravar um vídeo da tela do seu celular e espalhar por ai que você trocou mensagens com alguém que nem faz ideia de que isso aconteceu. O produto desses apps podem tanto servir para fins humorísticos como para falsear uma comunicação que pode atingir a honra e direitos de terceiros. Já apareceram alguns casos policiais no Brasil em que a montagem de conversas de WhatsApp veio à tona.
Embora a divulgação de vídeos de conversas instintivamente nos leve a acreditar no que estamos vendo, vale manter uma saudável desconfiança sobre a veracidade dessas “provas” nesses tempos em que vídeos e áudios podem ser facilmente manipulados. Isso se torna ainda mais difícil no Brasil, quando todos estamos acostumados a ver vazamentos de conversas alheias enquanto as atividades investigativas sobre as mesmas ainda estão em curso. Autorizadas ou não pelo Judiciário, as sucessivas divulgações de áudios e prints de mensagens nos viciaram nesse peculiar modo de se contar a história de um suposto ilícito.
Sendo assim, se vazou o print é porque está provado. E essa certeza se torna ainda mais convicta quando o prejudicado é alguém que está do lado oposto do espectro político-ideológico. Esse círculo então parece se fechar quando é cada vez mais fácil criar conteúdo manipulado e, do outro lado da linha, estão pessoas que cada vez mais facilmente acreditam neles.
3. Exploração sexual de crianças é crime e pode implicar o youtuber e a mãe da criança
Caso confirmado pelas autoridades, a conduta do youtuber é grave. Algumas pessoas levantaram a questão nas redes de que o episódio poderia ser relevado porque não houve contato físico com o menor. Isso não procede. Se teve ou não contato com a criança, se foi ou não frequente o envio desses conteúdos, se a foto foi ou não compartilhada e com quais finalidades são questões que interessam para calibrar a condenação.
O artigo 241-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente, pune com reclusão de três a seis anos e multa quem “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.”
Já o artigo 241-B, pune com reclusão de um a quatro anos e multa quem “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.”
Caso o teor das mensagens seja verdadeiro, não apenas existe um armazenamento da foto, mas também a sua divulgação para terceiros. Essa conduta agrava a situação tanto do youtuber como da mãe da criança.
4. Instigar o suicídio também é crime
Não deixa de ser paradoxal que muitos dos juízes das redes sociais que já condenaram o youtuber pelo crime de pornografia infantil são os mesmos que fizeram postagens incentivando o suicídio do “condenado”. Vale lembrar que induzir ou instigar alguém a suicidar-se também é crime (artigo 122 do Código Penal), com pena de reclusão de seis meses a dois anos.
Essa pena “é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real” (§ 4º) ou aumentada “em metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual” (§ 5º).
Nas redes têm desde enquetes grotescas sobre se o youtuber deveria ou não cometer suicídio a comentários que zombam do seu histórico de depressão. Já falamos aqui no Tecfront sobre como suicídio e redes sociais é um tema pouco compreendido. Enquanto não encontramos uma etiqueta para a tristeza nas redes, elas vão sendo tomadas por manifestações mais guturais como amor, ódio e aparência de felicidade.
O caso do PC Siqueira é também paradoxal porque de um lado ele possui todos os ingredientes que compõem esse caldo cultural que forma as redes sociais em 2020, com cancelamentos, “exposed”, celebridades e questionamentos sobre saúde mental. Todavia, olhando por trás do espelho, o caso não entrega as respostas rápidas que os julgamentos da internet demandam, frustrando os que desejam respostas simples para problemas complexos.
Quando vazaram os áudios e a repercussão do caso pareceu fugir de qualquer controle, o youtuber postou uma imagem com uma letra do cantor-compositor Leonard Cohen na qual se lê: “You want it darker, we kill the flame” (você quer a escuridão/nós apagamos a vela). “You want it darker” é também o nome do último disco do cantor, lançado 19 dias antes da sua morte.
Enquanto se espera por uma visão mais clara dos acontecimentos, podemos sempre recorrer à outra letra do genial Leonard Cohen que passa a mensagem justamente oposta ao dizer que: “everything has a crack, that’s how the light gets in” (tudo tem uma rachadura/é assim que a luz consegue entrar).
Vai ser reconhecendo as rachaduras e identificando o que a luz revela que não apenas essa história, mas também a nossa própria experiência nas redes sociais, podem se tornar mais iluminadas.
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