Liberal não, monopolista!

Coluna semanal do Ronaldo Lemos publicada na Folha de São Paulo

publicado em

10 de fevereiro de 2020

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Governo dobra a aposta na manutenção de certificado digital monopolizado

O governo federal acenou que iria digitalizar os serviços públicos para acabar com o martírio da burocracia que assola o país. Passados mais de 13 meses de governo, já dá para ver um pouco como essas políticas estão se desdobrando. E as notícias não são boas.

Houve, sim, avanços no território de digitalização de serviços públicos. No entanto, esses avanços estão longe de representar uma solução verdadeira para a burocracia.

Em outras palavras, o governo vem atacando só os galhos, deixando intacta a raiz do problema. E qual é a raiz do problema? Ela é dividida em duas partes.

Primeiro, a inexistência de uma identidade digital verdadeira no país. Segundo, a dispersão total dos serviços públicos, que deveriam ser unificados em uma plataforma única (veja bem: unificação dos serviços públicos, e não dos dados públicos, o que seria uma atitude totalmente irresponsável).

Sobre o primeiro aspecto, a situação é vergonhosa. O Brasil não tem e nem terá tão cedo uma identidade digital de verdade, como conseguiu a Estônia ou a Índia, capaz de revolucionar os serviços públicos.

 

A característica da identidade digital desses países é a universalidade e a capacidade de permitir a construção de outros serviços digitais em cima dela.

Em outras palavras, todo cidadão tem acesso a uma identidade digital gratuitamente. E essas identidades digitais podem ser utilizadas como ferramenta única de acesso para qualquer serviço público ou privado naqueles países.

O Brasil, por sua vez, apostou em um sistema oposto. O único método de identidade digital minimamente funcional disponível no país é o vergonhoso Certificado Digital, que é monopolizado por um órgão do governo federal chamado ITI (Instituto da Tecnologia da Informação).

Só que esse certificado digital custa até R$ 180 anuais para ser obtido. O resultado é que há menos de 5 milhões de brasileiros com ele e mais de 195 milhões de brasileiros que nunca terão um Certificado Digital.

Esses brasileiros estão certos. Não faz sentido um cidadão ter de pagar R$ 180 para poder acessar sites governamentais que deveriam ser acessados por todos os cidadãos gratuitamente, como a Receita Federal.

Sem o vergonhoso Certificado Digital, o acesso completo a esses sites não é possível.

Com o discurso do governo, era esperado que esse monopólio seria quebrado. Ledo engano. Ao contrário, o governo federal está dobrando a aposta na manutenção do ITI e no seu papel de impedir que o Brasil tenha uma identidade digital universal, verdadeira e gratuita.

Na semana passada, por exemplo, a tropa de choque do governo pressionou e conseguiu alterações em um projeto de lei que tramitava no Congresso que permitiria criar uma identidade digital gratuita e universal no Brasil. Em vez disso, quiseram criar ainda mais proteções legais ao vergonhoso Certificado Digital.

Em suma, o Certificado Digital é hoje a raiz de boa parte do atraso na digitalização dos serviços públicos no Brasil. Em um país verdadeiramente liberal, a lição do grande liberal americano Henry David Thoreau já teria sido aprendida: “Para cada mil homens dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando as raízes”.

No governo federal há muito mais de mil homens atacando as folhas da burocracia e nem um sequer atacando as raízes.

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