Ciência encontra conhecimentos indígenas em Manaus

Coluna semanal de Ronaldo Lemos na Folha de S.Paulo

publicado em

5 de setembro de 2023

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Caminho auxilia a compreensão do mundo

No centro histórico de Manaus fica um dos lugares mais interessantes do Brasil, talvez do mundo. Em um antigo sobrado funcionam ao mesmo tempo duas instituições que merecem ser amplamente conhecidas.

Na parte dos fundos está o Biatuwi, a primeira Casa de Comida Indígena do Brasil. Lá dona Clarinda Ramos, cozinheira do povo Sateré-Mawé, prepara as refeições que compõem o belíssimo cardápio. Filé de tambaqui puquecado, quinhapira do peixe matrinxã, farofa de maniwara (um tipo de formiga) e assim por diante.

Dona Clarinda faz tudo isso enquanto se prepara para ingressar no doutorado em antropologia. Afinal, mestre em antropologia ela já é, pela Universidade Federal do Amazonas, com um trabalho sobre a musicalidade do povo Sateré-Mawé. Dona Clarinda não só abriu a primeira casa de comida indígena do país, como faz parte da primeira geração de antropólogos pertencentes aos povos originários do Brasil. Incorporando as ferramentas teóricas da ciência que se formou na Europa nos séculos 18 e 19, ela estuda e analisa os costumes do seu povo e de outros por si mesma, e vai além.

Depois de provar a comida do Biatuwi, comentei com ela que muita gente deve olhar para o hábito de comer formiga como “exótico”. Ao observar mais de perto, vemos que ele provém de uma vida em sintonia com a floresta, com as estações do ano e com o ambiente. Tudo o que perdemos. Nesse contexto, exótico na verdade é comer salsicha e outros alimentos industrializados ultraprocessados, que são o oposto de qualquer sintonia com o ambiente ou com a natureza. Falei isso tudo para dona Clarinda, que pareceu concordar.

Na frente do mesmo sobrado funciona o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi. O centro oferece tratamentos e remédios naturais de povos originários do alto do Rio Negro. Na sua origem está João Paulo Barreto, do povo Tukano (também antropólogo), e um trauma.

Em 2009 a menina Luciane Barreto, sobrinha dele, foi picada por uma cobra e levada a um hospital em São Gabriel da Cachoeira. Chegando lá a equipe médica avaliou que seria necessário amputar o pé da menina. Na visão dos Tukano, é difícil entender um procedimento médico que retira uma parte do corpo. A família começou então a argumentar com a equipe para que a paciente fosse tratada aliando medicina com os conhecimentos tradicionais indígenas, o que não foi aceito.

Após um embate, em que um dos médicos inclusive deu um pito de que “tinha estudado oito anos para decidir o que era melhor para a neta dele, enquanto ele não tinha estudado um dia sequer”, a questão foi decidida com o apoio do Ministério Público Federal, que permitiu o tratamento conjunto. A menina se recuperou totalmente, hoje tem 26 anos e filhos. A partir desse embate, não só o Centro de Medicina Indígena foi criado, como vários programas de cooperação e pesquisa conjunta surgiram, envolvendo a Fiocruz e outros órgãos.

Dona Clarinda e João Paulo tiveram a grandeza de trilhar o caminho das ciências europeias para auxiliar sua compreensão do mundo. Pouca gente tem a grandeza de trilhar o caminho posto, permitir que a ciência dialogue com os conhecimentos tradicionais.


Já era – Contentar-se com as conexões de 4G

Já é – Exigir que o 5G tenha boa qualidade e seja mais acessível

Já vem – A chegada da tecnologia FWA, de conexão fixa por ondas de rádio

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