Abram alas para o Carnaval com reconhecimento facial!

Coluna de Carlos Affonso de Souza no UOL

publicado em

27 de fevereiro de 2019

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Dizem que no Carnaval você pode ser quem você quiser. Os tempos mudam e com eles mudam também as fantasias. Se antigamente todo mundo era pierrô ou colombina, hoje as pessoas saem para brincar como super-herói, político ou GIF do John Travolta. Não importa o quanto a identidade do folião se esconda atrás dos adereços e da maquiagem, existe alguém que sempre sabe quem é você na festa do Carnaval.

Estamos falando do Estado, esse folião oculto que está cada vez mais de olho nos blocos, trios e desfiles do Carnaval 2019. Em várias cidades do Brasil a instalação de câmeras equipadas com reconhecimento facial tornou possível que as autoridades possam monitorar locais públicos e identificar quem passa na frente da lente.

O senso comum diz que um dos melhores lugares para se esconder é no meio da multidão. Se alguém está precisando acertar as contas com as autoridades, é melhor começar a refazer os planos carnavalescos, pois é justamente nas multidões que a polícia está de olho.

Câmeras com reconhecimento facial podem cruzar os dados existentes em bases de dados diversas, como a dos procurados pela polícia, com as imagens das pessoas que passam pelas lentes dos dispositivos instalados em locais públicos. O sistema, ao cruzar os dados, indica às autoridades a probabilidade da pessoa procurada ser aquela que foi filmada, já apresentando as informações que a polícia precisa saber sobre o suspeito. Feito isso, cumpre às autoridades prosseguir com a abordagem.

No Carnaval de Salvador, em pelo menos 12 (doze) pontos ao longo dos circuitos Dodô (Barra-Ondina), Osmar (Campo Grande) e Batatinha (Pelourinho), existirão câmeras equipadas com reconhecimento facial. Equipes policiais estarão estrategicamente posicionadas para que, uma vez feita a identificação, os suspeitos possam ser abordados, segundo informações das autoridades responsáveis pela segurança pública.

No Rio de Janeiro, câmeras instaladas no bairro de Copacabana vão também começar a identificar procurados pela Justiça. A iniciativa-teste acontece através de uma parceria com a Oi. Espera-se que a empresa não atravesse o samba, já que a mesma foi condenada em 2014 por violar a privacidade dos seus consumidores ao monitorar hábitos de navegação. No relatório “Quem Defende seus Dados”, publicado anualmente pelo InternetLab, a Oi também recebeu avaliações baixas nos quesitos relacionados à transparência com a qual dados são tratados.

Mas não pense que é apenas no bloco e no trio que você poderá ser identificado. Não gosta de Carnaval e vai escapar da folia viajando para fora? Você também pode entrar na festa do reconhecimento facial! Desde 2016 a Receita Federal começou a implantar em 14 (quatorze) aeroportos brasileiros um sistema, desenvolvido pela japonesa NEC, que analisa os rostos de quem desembarca de voos internacionais.

Você já chegou de uma viagem internacional e o agente da Receita no aeroporto chamou você pelo nome para uma inspeção mais detalhada? Parabéns! Isso não é sinal de que você está ficando famoso, mas sim de que você caiu em algum dos critérios apontados pelo sistema de reconhecimento facial.

O sistema usado pela Receita procura cruzar várias informações como a sua profissão, informações de renda, natureza da viagem declarada, frequência de viagens e países visitados. As pessoas passam ainda por listas de procurados por tráfico internacional de drogas e lavagem de dinheiro, por exemplo. Dessa forma, não se depende apenas do desconfiômetro do agente da Receita para identificar quem pode estar entrando irregularmente no País.

Ao embarcar em um voo, o reconhecimento facial também está presente. O sistema da alemã Cognitec faz a conferência entre o rosto do passageiro e a foto do passaporte.

Mas será que todo esse reconhecimento facial está dentro da lei? Aqui vale lembrar que o Brasil aprovou uma Lei geral de proteção de dados pessoais (Lei nº 13.709/18, a LGPD). A Lei garante uma série de direitos aos titulares de dados pessoais, dando aos mesmos a possibilidade de se opor à coleta de dados, por exemplo. Acontece que a LGPD não se aplica ao tratamento de dados realizado para fins exclusivos de segurança pública e para atividades de investigação e repressão de infrações penais (art. 4º, III, “a” e “d”, Lei nº 13.709/18).

A LGPD ainda indica que o tratamento de dados pessoais para essas finalidades deverá ser regido por uma legislação específica e que ela “deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei” (art. 4º, §1º). Essa lei específica, assim como muita coisa na ficção científica, ainda não existe.

Isso não significa dizer que estamos todos desguarnecidos no que diz respeito à privacidade e à proteção de dados frente ao tratamento feito pelo Estado para fins de segurança pública. A Constituição Federal tutela a privacidade e os dados pessoais e pode ser invocada para situações em que o Estado ultrapassa os limites legais.

Um ponto de preocupação adicional no que diz respeito ao tratamento de dados para fins de segurança pública é que esse tratamento nem sempre será feito exclusivamente pelo Poder Público. Como visto nos exemplos acima, empresas privadas usualmente fornecem a tecnologia que é usada pelas autoridades. Como garantir então que as mesmas empresas não passem a usar esses dados? Ou ainda, como garantir que o Estado não vai usar os nossos dados como pagamento pelo serviço prestado pelas empresas?

A LGPD procura conter essa situação ao afirmar que esse tratamento, quando feito “por pessoa jurídica de direito privado só será admitido em procedimentos sob a tutela de pessoa jurídica de direito público” (art. 4º, §2º). Da mesma forma, os dados pessoais constantes de bancos de dados criados para esses fins “não poderão ser tratados em sua totalidade por pessoas jurídicas de direito privado” (art. 4º, §2º). Já é um começo, mas esse controle precisa ser testado na prática.

O Brasil ainda está longe de ter uma verdadeira cultura de proteção de dados pessoais. Sendo assim, não se deve esperar que a notícia do reconhecimento facial no Carnaval gere qualquer reação mais extremada por parte dos foliões. No máximo, algum especialista em data privacy vai sair por ai com fantasias temáticas. Para a infelicidade geral, o simples acesso a uma torneira e a dois ou três dados de RPG já permitem que nerds brinquem o Carnaval vestidos de vazamento de dados.

Como será o Carnaval com reconhecimento facial? Espera-se que os dados coletados sejam mesmo usados apenas para fins de segurança pública e que não entrem na roda-viva de nebulosas transações. Caso contrário, em um futuro muito próximo saberemos quem é que leva a vida no arame e quem, ao sassaricar, é exatamente a viúva, o brotinho e a madame.

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