Ainda acha que o coronavírus é só gripe mais forte? Isso é tão fevereiro

Coluna semanal do Carlos Affonso publicada no UOL.

publicado em

18 de março de 2020

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Tudo isso começou na China. Lá eles comem uns animais estranhos. No YouTube tem uma moça comendo sopa de morcego. Imagina o que mais devia vender no mercado de carne fresca de Wuhan? Teve um médico chinês que tentou avisar sobre o novo coronavírus nas redes sociais. O governo advertiu o doutor e fez ele assinar uma declaração jurando que não ia mais espalhar boatos. Ele pegou o vírus e faleceu. As empresas de internet também foram intimadas a não espalhar desinformação sobre o covid-19. O governo falou que ia fazer “inspeções temáticas” nas empresas que operam rede sociais populares como Wechat e TikTok.

“Mas o coronavírus vai ser diferente no Brasil”.

Aqui a gente já come tanto agrotóxico que vírus do morcego é vitamina. Os nossos médicos jamais precisariam ser advertidos pelo governo por espalhar desinformação, já que aqui são as autoridades que informam e desinformam. Uma hora é para ninguém sair de casa, na seguinte pode abraçar o povo na rua aglomerado, tirar selfie com celular alheio e recomendar a volta dos jogos de futebol. Quem se importa com a saúde dos jogadores e da torcida? Eles que lutem. No Brasil a gente não usa Wechat e TikTok mais parece o som de uma bomba relógio. Por sinal, viu que o Bomba Patch, versão não-oficial do game Pro Evolution Soccer, já está 100%atualizado com o jogador Honda, do Botafogo, de máscara cirúrgica como a que ele usou na estreia contra o Bangu? O jogo deu empate, mas a vida inspira a arte.

Na Itália a coisa complicou. Dizem que a sociedade não conseguiu se preparar. Uns acreditavam que a crise ficaria contida na China. Outros desconfiavam dos alertas na mídia. Quando o coronavírus pegou para valer, a primeira região afetada foi a Lombardia. Se você não mora lá tudo bem, né? Mas a epidemia avançou rápido e o sistema de saúde ficou saturado. Teve que vir respirador da China. No Twitter tem uns relatos assustadores de médicos deixando de atender pessoas para salvar outras. Um verdadeiro clima de guerra. Muita gente morreu e agora o país está fechado. Em quarentena, os italianos cantam “Bella, ciao!” nas janelas de Roma.

“Mas o coronavírus vai ser diferente no Brasil”.

Aqui a gente sabe se preparar. É só olhar para a nossa bandeira com o lema positivista de “ordem e progresso”. Parafraseando Noel Rosa, vamos desprezar essa lei de Auguste Comte? Se todo mundo se organizar ninguém vai se infectar. O vírus pode estar em progressão, o PIB em progressinho, mas o brasileiro sabe priorizar. Quando do fechamento deste texto estava dentre os assuntos mais comentados no Twitter nacional o traumático aniversário do dia em que a Globo botou o programa da Fátima Bernardes no lugar da TV Globinho na programação, calando as vozes de padrinhos mágicos, Bob Esponja e três espiãs demais.Quem garante que esse confinamento forçado em nome da saúde pública não é mais um golpe da emissora, agora deixando todo mundo em casa para votar no BBB? #ForaPyong #ForaCorona.

Nos Estados Unidos o vírus chegou no final do inverno e na boca do processo eleitoral. O presidente no início diminui a importância da epidemia, mas agora prometeu mundos e fundos para combater o vírus. Começaram a faltar testes para o diagnóstico do covid-19 e as pessoas se perguntam como o sistema de saúde americano vai ser impactado pela expansão da doença. Cancelaram a NBA, fecharam a Disney e foram proibidos os voos vindos da Europa.

“Mas o coronavírus vai ser diferente no Brasil”.

Aqui não faz o frio que faz lá fora e a gente leu no WhatsApp que o calor mata o vírus. Macapá tá salva. Não foi um ministro da Suprema Corte americana que disse que “a luz do sol é o melhor detergente”? Louis Brandeis mirou na transparência e acertou no coronavírus. Lá eles têm mundos e fundos para combater a epidemia e mandar uma missão tripulada para a Lua em 2024. Aqui falta leite no mercado, leitos nos hospitais e o governador de Alagoas, Renan Filho, mandou a gente aprender com “o que ocorreu na China, na Itália e em outros planetas“. Será que cabe mais gente nessa espaçonave?

“O coronavírus pode ser diferente no Brasil”.

Mas para isso você vai ter que fazer a sua parte e não repetir algumas das besteiras ditas de propósito acima. Agora já não dá mais para delegar. O primeiro passo é se informar. Você ainda acha que o coronavírus é só uma gripe mais forte? Isso é tão fevereiro! Não deixa de ser irônico que o vírus tenha criado uma urgência informacional justo quando o mundo ainda procura uma saída para o fenômeno da desinformação.

Depois é preciso não menosprezar a situação e seguir religiosamente as instruções sobre higiene e reclusão. Cada pessoa que não se cuida aumenta o risco de infecção para quem está próximo. É verdade que nem todos os estados começaram a impor um regime de quarentena e que muita gente não tem escolha quando o trabalho exige o deslocamento. Justamente por isso este momento é tão relevante e que todos devam dedicar o máximo de atenção às medidas de combate ao vírus. Todo cuidado importa e a prevenção não vai ser completa apenas se os outros se preocuparem. Você vai lavar as mãos?

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