Brasil perdeu a luta das IDs digitais

Coluna semanal de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo

publicado em

8 de setembro de 2020

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A Câmara e o Senado aprovaram na semana passada uma lei que será capaz de excluir 195 milhões de brasileiros de acessar vários serviços públicos essenciais de forma digital.

Essa derrota tem origem na medida provisória 983, que, em sua versão original, ousou fazer política pública para atender os 98% de pessoas no país que não têm um certificado digital (aquele que é usado para entrar no site da Receita Federal e que custa cerca de R$ 200 por ano, sendo usado por apenas 2% da população).

A MP quebrava o monopólio dessa tecnologia cara e obsoleta, permitindo que outras formas de identidade digital fossem utilizadas para acessar sites do governo.

Só que, quando essa MP chegou ao Congresso, teve seu texto descaracterizado. Em vez de reduzir a exigência do certificado digital, aumentou. Mais do que isso: criou um monopólio baseado em lei para esse tipo de certificado, em oposição direta ao princípio da livre iniciativa e concorrência da Constituição.

Segundo o texto aprovado no Congresso, passa a ser obrigatório usar o certificado digital para qualquer interação com o poder público que envolva sigilo constitucional (ou seja, inúmeras atividades), para transferência de veículos ou emissão de notas fiscais. Atos das empresas, como assembleias, atas e outros, também deverão usar o certificado.

É uma lástima que uma decisão como essa tenha ocorrido. O editorial da revista The Economist desta semana tem por título justamente: “A Covid-19 reforçou a necessidade das identidades digitais”.

No editorial, a revista mostra que a falta de digitalização dos serviços públicos e de um sistema de identidades e assinaturas digitais acessível a todos pune os mais pobres. Fato que é exemplificado pelos 30 milhões de pessoas que tiveram dificuldade de receber o auxílio emergencial no Brasil.

Países como a Índia, que há anos usam um sistema de assinaturas e identidades digitais abrangendo 1,19 bilhão de pessoas, conseguiram gerenciar a crise de forma muito mais eficiente, lembra a revista.

A tragédia do atraso do país em criar um sistema nacional de assinaturas e identidades digitais tem também outra dimensão: atrasar a digitalização dos serviços públicos e fazer perdurar a burocracia que martiriza a todos e —novamente— os mais pobres em especial.

Com a decisão do Congresso sobre as assinaturas digitais, o Brasil derrotou a si mesmo quanto à possibilidade de criar um sistema próprio e eficiente para permitir a digitalização massiva dos serviços públicos.

Por coincidência, a Apple anunciou na semana passada que pediu patentes para um sistema de identidades e assinaturas digitais. Várias outras big techs estão seguindo pelo mesmo caminho.

O sistema que Apple está criando intenciona substituir todas as formas de identificação e certificação digital. É uma boa notícia, mas apenas parcialmente.

O ideal não é a Apple substituir o vergonhoso certificado digital, mas sim o Brasil ser capaz de criar uma solução local inovadora, de forma multissetorial, que dê independência ao país nessa questão fundamental.

Com a MP 983 aprovada dessa forma, isso não acontecerá. Pularemos do certificado digital direto para a Apple ou outra big tech, sabotando qualquer chance de inovação local.

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