Nobel da Paz é recado para os abusos nas redes sociais, inclusive no Brasil

Leia a coluna de Carlos Affonso Souza no UOL

publicado em

19 de outubro de 2021

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O Brasil bateu na trave no Nobel da Paz. As razões indicadas para os prêmios concedidos aos jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov em 2021 valem para as Filipinas, para a Rússia e para nós também.

A trajetória dos premiados passa pela defesa da liberdade de expressão em países nos quais a imprensa é ameaçada por ataques coordenados nas redes sociais e nos quais governos abusam do poder em uma “escalada de violência e autoritarismo”.

Um ponto que une os dois jornalistas é o trabalho que explora como as redes sociais são usadas para disseminar desinformação e ataques.

Muratov fundou a Novaja Gazeta, jornal russo que se destacou por apontar escândalos de corrupção no governo, mas que também trouxe à tona a criação das famosas “fazendas de trolls” russas, como a Internet Research Agency, que ganharam proeminência no contexto das eleições nos Estados Unidos de 2016.

Maria Ressa criou o Rappler, um veículo de imprensa digital que expôs as práticas populistas do governo Duterte e como a campanha de combate às drogas nas Filipinas acobertou perseguições e assassinatos. Frequentemente atacada nas redes, as agressões à Ressa lembram muito os ataques reiterados que jornalistas mulheres sofrem do lado de cá.

A jornalista enfrenta processos nas Filipinas, por alegadas difamação e evasão fiscal, tendo sido presa duas vezes. “Em certas partes do país as pessoas acham que eu sou uma criminosa porque o governo assim o diz”, afirmou Ressa em uma entrevista recente.

Tanto Ressa como Muratov são atacados por uma milícia digital que os reputa como inimigos da nação, financiados por interesses externos para desestabilizar os governos nacionais. Seus laços com veículos estrangeiros (Ressa, por exemplo, trabalhou na CNN) são usados nesse contexto.

Por aqui também não faltam teorias da conspiração de que jornalistas são agentes de governos estrangeiros. A depender do espectro político ora eles são agentes norte-americanos, ora empregados a serviço do governo chinês.

Seis jornalistas do Novaya Gazeta, jornal de Muratov, foram assassinados pelo exercício da sua profissão. A situação nas Filipinas não é diferente. O Brasil, por sua vez, recorrentemente figura no ranking de impunidade de assassinatos de jornalistas.

Guardadas as devidas proporções, os premiados com o Nobel da Paz vivenciam uma realidade que não é estranha aos jornalistas brasileiros em tempos bicudos como os que atravessamos.

A imprensa livre é vista como inimiga do governo, ataques coordenados acontecem a todo momento, fomentando narrativas sem lastro fático e disseminando desinformação.

O Nobel da Paz consagrou em 2021 a liberdade de expressão “como uma pré-condição para a democracia e a paz duradoura”.

O texto da mensagem que revelou os premiados também considerou “como as redes sociais estão sendo usadas para espalhar notícias falsas, intimidar opositores e manipular o discurso público.”

Sendo assim, diz a mensagem do Comitê, um jornalismo “livre, independente e baseado em fatos cria proteções contra o abuso do poder, mentiras e propaganda de guerra.”

Sem liberdade de expressão e de imprensa, continua a mensagem, “será difícil promover com sucesso a fraternidade entre as nações, o desarmamento e uma melhor ordem mundial que floresça em nosso tempo.”

Temos assim um Prêmio Nobel da Paz que reconhece como as redes sociais podem ser manipuladas de forma a não se atingir os fins desejados de entendimento e pacificação. Ao contrário, através de ataques, mentiras e paranoia, as redes podem se transformar em um instrumento de conflito.

Diversos países atravessam os mesmos processos contra os quais Ressa e Muratov lutam nas Filipinas e na Rússia, respectivamente. Cada país possui a sua trajetória particular, mas em todos se percebe como uma tecnologia que deveria levar mais comunicação e acesso ao conhecimento para as pessoas pode ser transformada em um canal para a promoção de um populismo digital, que blinda a figura do governante e cria condições para seus opositores sejam atacados e que teorias conspiratórias cada vez mais prosperem.

O comitê do Nobel da Paz, com a sua feliz escolha sobre o tema e os premiados, joga mais luz sobre um assunto que está cada vez mais no topo da agenda de inquietações globais.

Para além dos ataques e da desinformação, é preciso encontrar caminhos que transformem as redes sociais em um instrumento de fortalecimento do debate democrático e de preservação da paz.

Para isso, é preciso entender como chegamos até aqui, o que foi e o que ainda pode ser feito para atingir os objetivos sinalizados pelo Nobel.

Como diz um provérbio filipino: “quem não sabe de onde veio nunca vai encontrar o seu destino.”

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