O que muda com o ECA Digital? Como ele protege as crianças, mas cria dilema

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

21 de agosto de 2025

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Aprovado no Congresso, o ECA Digital busca proteger menores na internet, impondo prevenção a grandes plataformas e estabelecendo verificação de idade em redes sociais

A repercussão do vídeo do influenciador Felca, denunciando a adultização de menores nas redes sociais, criou o ambiente propício para o Congresso sair das cordas, depois de semanas tumultuadas. A atenção recaiu no PL 2628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), e o “ECA Digital” seguiu para aprovação em ambas as casas.

Muito saiu na mídia sobre os aspectos políticos do projeto: como ele oferece uma narrativa positiva para o presidente da Câmara, Hugo Motta, e destrava a pauta de regulação das grandes empresas de tecnologia, conforme desejado pelo governo.

Mas, o que diz o projeto?

Um olhar cuidadoso sobre o texto, que segue a toda velocidade para virar lei, revela avanços na proteção de menores na internet, mas também uma boa dose de excessos e de dispositivos cuja implementação será desafiadora. Há obrigações desproporcionais ou que careceriam de mais apuro para evitar que elas virem letra morta.

O texto do projeto se apoia em alguns pilares centrais:

• A proteção integral dos menores, que substituiu expressões como dever de cuidado, usadas no exterior. Exige que empresas de tecnologia incorporem medidas de proteção desde o design dos serviços e, quando isso não for possível, impeçam o acesso por crianças e adolescentes. A direção aqui é clara: impor obrigações preventivas, e não apenas reativas, para grandes plataformas.

• A verificação de idade. Determina que redes sociais, sites de pornografia e apps que representem riscos tenham mecanismos “confiáveis” para impedir que menores acessem conteúdos impróprios.

O que muda no acesso das crianças?

Mais controle parental

O PL 2628 obriga as redes sociais a terem ferramentas de supervisão (controle parental) acessíveis e configuradas por padrão no modo mais protetivo.

Contas de menores até 16 anos precisarão ser vinculadas a responsáveis, e os provedores terão que investir em mecanismos mais robustos de verificação de idade.

Isso significa restringir contatos, limitar o tempo de tela, bloquear a geolocalização e até controlar algoritmos de recomendação.

Um detalhe importante: os provedores não poderão usar truques de design para induzir a criança a desabilitar os controles ou enganar os pais.

O projeto mira práticas já identificadas em apps populares, como notificações insistentes ou mecanismos de rolagem infinita, que exploram vulnerabilidades psicológicas e dificultam a mediação parental.

Menos exposição em jogos

A proposta também atinge diretamente os jogos eletrônicos, restringindo as chamadas loot boxes —aquelas caixas de recompensa virtuais, que funcionam como loteria e premiam com itens ou vantagens aleatórias. Elas têm sido associadas a compulsividade e gastos inesperados, aproximando crianças de práticas de jogos de azar.

Além disso, jogos com interação entre pessoas deverão oferecer sistemas de denúncia de abusos, permitir que pais desabilitem chats e obedecer rigorosamente à classificação indicativa etária.

As embalagens dos eletrônicos de uso pessoal que permitam acesso à internet, fabricados no Brasil ou importados, mas vendidos aqui, deverão conter adesivo, em português, que informe aos pais ou responsáveis sobre a necessidade de proteger crianças e adolescentes de sites com conteúdo impróprio ou inadequado para essa faixa etária.

Menos publicidade direcionada

O PL proíbe o perfilamento, análise emocional e direcionamento de anúncios para crianças e adolescentes. Ou seja, dados de menores não podem ser usados para montar perfis comportamentais usados para tornar esse público-alvo de publicidade segmentada e para explorar momentos de vulnerabilidade emocional com fins de consumo.

A medida coloca o Brasil em sintonia com a União Europeia e responde a denúncias de que plataformas conseguem detectar quando jovens estão ansiosos ou tristes.

Como as empresas serão punidas?

O projeto estabelece um regime de sanções, igual ao já adotado na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

As multas podem chegar a 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil, limitadas a R$ 50 milhões por infração, além de prever suspensão e até proibição de funcionamento das atividades em casos mais graves.

Os valores arrecadados serão destinados ao Fundo Nacional da Criança e do Adolescente.

Onde está a polêmica?

Verificação de idade

Se de um lado há consenso sobre a necessidade de impedir que menores estejam em ambientes de risco, de outro não há solução técnica ideal:

• A autodeclaração é insuficiente (e explicitamente vetada no projeto);

• Exigir documentos ou biometria pode ferir a privacidade e criar barreiras de exclusão;

• Usar algoritmos para estimar idade é uma opção mais flexível, mas pouco transparente e confiável e sujeita a erros e discriminação.

O mundo todo debate esse tema. É o clássico dilema regulatório: como proteger sem criar um estímulo à vigilância?

Há o perigo da falsa sensação de segurança. Ferramentas podem funcionar bem para crianças pequenas, mas adolescentes mais autônomos podem facilmente burlar as restrições.

Além disso, ao tratar crianças e adolescentes como um bloco homogêneo, o projeto pode falhar em reconhecer que diferentes idades exigem diferentes tipos de proteção.

Há também o risco de que controles excessivos restrinjam a privacidade e autonomia dos jovens.

Especialmente para os sites de conteúdo adulto, a implementação dessa medida vai fazer com que as pessoas recorram a redes virtuais privadas (VPNs) para escapar das travas de verificação.

Na Espanha, por exemplo, entrou em vigor uma lei que, para proteger menores, faz com que adultos baixem uma aplicação que gera credenciais anonimizadas para acessar sites de pornografia.

Na Inglaterra, onde verificações de idade em sites adultos já estão em vigor, o número de acessos a esses sites caiu significativamente.

Restrição às caixas de recompensa

Essa parte encontrou resistência no setor de games por já ter sido tratada na lei dos jogos eletrônicos.

A lei nº 14.852/2024, aprovada no ano passado, traz vários dispositivos que se sobrepõem ao ECA Digital, e proíbe compras ou transações comerciais dentro dos jogos com contas de crianças e sem o consentimento dos responsáveis.

No final das contas, o texto do projeto determina que:

  1. o jogador deverá receber uma recompensa de, no mínimo, um item virtual ou vantagem aleatória, evitando caixas vazias ou sem acesso a algum benefício no ambiente do jogo;
  2. a empresa deve divulgar a probabilidade de se obter as recompensas;
  3. é proibida a comercialização ou conversão de itens obtidos nas caixas em qualquer forma de moeda corrente;
  4. é vedado conceder vantagens competitivas desproporcionais para jogadores que paguem para ter acesso aos benefícios em detrimento dos não pagantes.

Perfilamento e publicidade

Para entidades de defesa dos direitos das crianças, as proibições sobre publicidade e formação de perfis de menores são importantes para deixar esse público de fora do circuito algorítmico.

Já para empresas de tecnologia a proibição seria ampla demais e poderia inviabilizar até mesmo personalizações com fins educativos.

A tensão aqui é entre uma proibição absoluta e uma abordagem flexível que preservasse algum nível de customização.

O que esperar daqui para frente?

A aprovação do texto, somado com a decisão recente do STF sobre responsabilidade de plataformas e o intuito do governo em apresentar dois projetos de lei no Congresso sobre serviços e mercados digitais, respectivamente, começam a adensar o cenário regulatório sobre a internet e os meios digitais no Brasil.

Estamos prestes a entrar em um novo momento, no qual a culpa pelos males advindos das redes não vai mais poder ser atribuída à falta de regulação (ou à necessidade de sua atualização).

Isso faz com que, nas crises futuras, como a desencadeada pelas denúncias do Felca, toda atenção recaia mais em como as leis estão sendo aplicadas do que na criação de novas regras.

Por isso mesmo, é relevante entender quem vão ser os “xerifes” do ECA Digital e começar a acompanhar a aterrissagem da lei, que sai do Congresso para entrar no dia a dia de autoridades, de empresas, mas também na rotina de pais e responsáveis.

Afinal das contas, como lembra a Constituição Federal, o exercício dos direitos das crianças é um dever compartilhado entre a família, a sociedade e o Estado.

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