Regulação das fake news pode virar luta pela sobrevivência de deputados

Coluna de Carlos Affonso Souza no Uol Tilt.

publicado em

21 de junho de 2024

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Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de um grupo de trabalho para criar um projeto de lei sobre o combate à desinformação

Filmes de sobrevivência são sempre angustiantes. Esse gênero cinematográfico usualmente coloca o protagonista em situações extremas, nas quais ele precisa enfrentar as condições externas, seja uma avalanche, uma ilha deserta ou tubarão faminto para permanecer vivo e voltar à segurança da civilização.

Fazendo jus à famosa frase de Jean-Paul Sartre de que “o inferno são os outros”, alguns filmes de sobrevivência focam não em uma pessoa, mas sim em um grupo de indivíduos que se encontram perdidos e sem contato com o mundo exterior. Nesse caso, o grupo vive o dilema entre cooperar para que todos alcancem o resultado comum ou se fragmentar em pequenas facções, que podem depredar umas às outras na busca pela salvação. “O Senhor das Moscas”, “Lost”, “Vivos” e tantas outras obras exploram esse tema.

Impasse na Câmara sobre PL das Fake News

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de um grupo de trabalho com 20 (vinte) deputados para criar um projeto de lei sobre o combate à desinformação. A iniciativa veio depois de um longo impasse sobre o texto do projeto de lei nº 2630/2020 (conhecido como “PL das Fake News”), que procurava tratar do tema, mas que foi sendo ampliado para se transformar em uma verdadeira regulação das plataformas digitais, tratando de assuntos como liberdade de expressão nas redes, transparência algorítmica e remuneração de jornalistas.

O PL2630 chegou a ser levado à votação no plenário da Câmara dentro de um contexto de ameaça de violência nas escolas, campanha das big techs contra a medida, além de deputados alegando que o texto impediria a citação de versículos bíblicos nas redes sociais, enquanto outros defendiam a sua aprovação para responsabilizar provedores que nem mesmo eram afetados pelo PL. Uma confusão que terminou por fazer com que o texto fosse retirado de pauta para ajustes.

De lá para cá, na escalada das publicações de Elon Musk sobre o ministro Alexandre de Moraes, Arthur Lira disse que a votação do PL2630 restou inviabilizada e que ele convocaria um grupo de trabalho para produzir um novo texto.

Grupo de Trabalho vai produzir um novo texto

Anunciado na semana passada, o grupo de trabalho procura refletir a composição de forças na Câmara. Como era de se esperar, ele é bastante diverso e coloca juntos na empreitada de se chegar a consenso sobre o tema para lá de controvertido deputados e deputadas que não poderiam pensar de modo mais diferente sobre o assunto.

A deputada Lídice da Mata (PSB-BA) foi a relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, tendo sido bastante vocal sobre a existência de uma rede de desinformação que precisava ser investigada e desarticulada. O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), por sua vez, foi o relator do substitutivo do PL2630 na Câmara.

Em aparente maioria na composição do grupo estão deputados com visões críticas sobre as atuais propostas regulatórias para o combate à desinformação, como Marcel Van Hattem (Novo-RS), Gustavo Gayer (PL-GO) e Filipe Barros (PL-PR).

O grupo de trabalho terá 90 (noventa) dias, prorrogáveis por igual prazo, para criar um texto de consenso sobre o combate à desinformação. Existe dúvida sobre o papel que o texto do PL2630 vai desempenhar no trabalho do grupo. Eles vão começar da estaca zero ou algum dispositivo do PL2630 vai ser aproveitado?

Imunidade parlamentar nas redes sociais

Se eu pudesse apostar diria que pelo menos o artigo do PL2630 que estende a imunidade parlamentar às redes sociais será mantido. Esse dispositivo vai fazer com que, de fato, as plataformas não mexam em postagens feitas por políticos nas redes. A bola sobre o tema está quicando inclusive no STF, que está apreciando a queixa-crime do deputado Gustavo Gayer contra o deputado José Nelto (PP-GO), que chamou o colega de “fascista”, “nazista” e “idiota” em um podcast.

O julgamento do processo está parado no STF por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, mas antes disso o ministro Dino, em seu voto, afirmou que “está cada vez mais comum ter parlamentares ocupados em produzir vídeos do que usar a tribuna”, não havendo uma “distinção entre o recinto parlamentar e o que ali não ocorre.” Segundo o ministro, esse instituto estaria passando por verdadeira “mutação constitucional”.

O STF vai esperar o Congresso?

Por falar em STF, um efeito prático da criação do grupo de trabalho na Câmara é a demarcação de um novo compasso de espera entre o tribunal e o Legislativo. O Supremo tem dois casos pendentes de julgamento sobre a responsabilidade de provedores na Internet. O ministro Dias Toffoli, relator de um dos processos, afirmou que teria o seu voto pronto para apreciação em plenário ainda nesse primeiro semestre.

Com o andamento dos trabalhos na Câmara, ainda mais com prazo determinado de noventa dias (prorrogável por mais noventa), é de se imaginar que o STF não julgue os processos antes de se conhecer o resultado das atividades do grupo. Embora valha lembrar que o próprio ministro Toffoli, quando perguntado sobre a relação entre STF e Congresso no enfrentamento da matéria, já respondeu que o tempo do Congresso não é o tempo do Judiciário.

E se o Congresso não chegar a acordo?

Agora vale pensar o que aconteceria se, ao final do prazo concedido para o grupo de trabalho, dada a existência de naturais divergências entre os seus integrantes, não se chegasse a acordo. Quais seriam as consequências?

A primeira é que, ao que tudo indica, essa é a última chance que o Supremo está dando ao Congresso para aprovar algum texto que enderece o tema da regulação de plataformas digitais. Ao expirar o prazo do grupo de trabalho sem uma definição estaria acesa a luz verde para o STF tirar algum contorno mais abrangente das suas decisões sobre responsabilidade civil de plataformas, abordando também a questão do combate à desinformação.

A segunda consequência é a construção de uma narrativa por parte de Arthur Lira, que poderia dizer que tentou de tudo para que o Congresso aprovasse um texto sobre o combate à desinformação: ele botou em votação o PL2630 e criou o grupo de trabalho. Ainda mais: poderia dizer que desinformação é um tema tão complexo que até mesmo um assunto espinhoso como a reforma tributária conseguiu gerar um texto de consenso em grupo de trabalho criado na Câmara.

Vai ter muita gente acompanhando nos próximos meses as atividades do grupo de trabalho na Câmara como se fosse um reality show ou filme de sobrevivência. Quais grupos vão se formar? Quem vai se aliar com quem? No final das contas, o grupo vai trabalhar junto para um resultado comum ou o que vamos ver é mais polarização, bate-boca e vídeos para gerar engajamento?

Assim como nos filmes de sobrevivência, os nossos protagonistas precisam se salvar. E deputados se salvam com os votos de seus eleitores. Aqui mora o perigo de que, em tempos de polarização aguda, ao invés de unir esforços para gerar um texto de consenso, os deputados prefiram usar o grupo de trabalho para mobilizar seus apoiadores, fazendo dele palco para uma campanha eleitoral permanente. Quem não se salva no final desse filme de sobrevivência é o debate democrático.

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