Precisamos falar sobre Provas Digitais

Por Bernardo Accioli

categorias

{{ its_tabs[single_menu_active] }}

tema

Romances policiais, desde pelo menos a segunda metade do século XIX, integram o quotidiano de muitos leitores. Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Edgar Allan Poe, Leroux, Georges Simenon, Fernando Pessoa, Rubem Fonseca, Luís Fernando Veríssimo, Jô Soares e Pedro Bandeira: você certamente já leu um deles. A fantasia, contudo, da “prova cabal”, se antes dificultada pela escassez de recursos investigativos, agora é embaraçada, justa e ironicamente, pela abundância de informações passíveis de coleta. E daí emergem inúmeros desafios.

 

Possibilidade material não equivale a possibilidade jurídica. As provas, tanto físicas quanto digitais, submetem-se, naturalmente, ao crivo da legalidade e da constitucionalidade. Muitas vezes, as provas físicas revelam também um filtro de fato: uma impossibilidade fática, mesmo, de sua produção. As digitais, por outro lado, permitem viajar por mares nunca antes navegados. 

 

Se uma pessoa politicamente exposta fosse vítima de um atentado nos anos 80, seria inviável, a um só tempo, de modo produzir uma lista de suspeitos, cruzar as informações de todos aqueles que tivessem (i) pesquisado o nome da vítima na lista telefônica; (ii) sido vistos no local do crime, ou dele se evadindo; (iii) vasculhado os jornais locais, em busca da agenda de compromissos públicos da vítima. Atualmente, com a ampla implementação da geolocalização em smartphones, infinitas câmeras de vigilância espalhadas pelas cidades (muitas delas com reconhecimento facial habilitado), e conservação do histórico de busca dos usuários, a questão volta-se mais à legalidade da requisição do que sobre a possibilidade material de levantamento desses dados. Esse é o tema, por exemplo, de caso a ser julgado este ano pelo Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral reconhecida. (1)

 

No âmbito do Direito Trabalhista, poderia o empregador demandar a geolocalização do empregado, devassando sua privacidade, de modo a comprovar que se encontrava em outro lugar em horário de trabalho? Ou tal medida, extrema deveras, encontraria vedação legal? E qual seria a validade jurídica de uma captura de tela juntada à reclamação? Como garantir a integridade da prova digital, sobretudo a cadeia de custódia das provas digitais (2) (e aqui voltamos para a discussão penalista…)? 

 

Diversas são as formas de se categorizar dados eletrônicos, e muitas vezes elas não nos ajudam muito. Pessoais ou não pessoais, públicos ou privados, estruturados ou não estruturados, aberto ou proprietário. Historicamente, três categorias básicas foram utilizadas para a produção de arcabouço normativo: (i) dados de registro (quem?); (ii) dados de tráfego (entre quem?); e (iii) dados de conteúdo (o quê?). Muitas vezes, leis nacionais atribuíam graus diferentes de proteção a cada uma dessas categorias.

 

Com o advento da Internet, algumas questões surgem com mais frequência, e borram as linhas entre as categorias clássicas. Dados de registro, por exemplo, foram historicamente tratados como menos sensíveis, mas o registro de um usuário em um aplicativo de namoro para pessoas do mesmo sexo, por exemplo, permite uma inferência bastante sensível sobre o conteúdo. A situação fica mais dramática quando há vazamento de dados cadastrais de usuários em países onde a homossexualidade é criminalizada. (3) Ou, então, no caso dos smartwatches, seriam os dados cardíacos dados de registro, porque dizem respeito ao usuário, ou dados de conteúdo? Essa distinção ainda faz sentido em um mundo que, a cada dia, permite mais inferências sensíveis?

 

E, afinal, em que lugar está a Internet? Por fim, em um mundo globalizado e conectado, não se pode deixar de abordar o grande problema que é a transferência internacional de dados e a cooperação jurídica internacional. Se a autoridade judiciária brasileira não pode coagir um banco suíço a lhe entregar, aqui Brasil, o conteúdo de um cofre em Berna, seria possível constranger uma sociedade a entregar uma prova que esteja armazenada em um servidor no estrangeiro? O Marco Civil da Internet autorizaria uma requisição direta? Ou o caminho deveria passar, necessariamente, pelo MLAT, cartas rogatórias, ou outros meios de cooperação jurídica internacional? (4)

 

Todos esses temas, pinçados dos mais diversos ramos do Direito, estão na pauta do dia em nosso Legislativo e nosso Judiciário, motivo pelo qual planejamos o curso “Provas Digitais: Fundamentos e Aplicações Práticas no Direito. O curso, com foco multidisciplinar, tem como ponto comum as dificuldades mais frequentes que surgem no âmbito do direito probatório em meio às novas tecnologias. O corpo docente reúne professores das mais diversas especialidades: Direito Civil, Direito Penal, Direito Internacional, Direito do Trabalho, proteção de dados, e perícia forense. Juntando as peças sob diferentes pontos de vista, tal como um detetive, o objetivo do curso é transmitir ao aluno um sólido panorama quanto às atuais discussões sobre os meandros das provas digitais nas mais diversificadas linhas de frente do Direito. Espero que gostem!

 

 

(1) Já exploramos a questão em https://www.conjur.com.br/2023-out-02/vasconcellos-perrone-rosa-weber-dados-marielle2/ . Trata-se do Recurso Extraordinário nº 1.301.250.

(2) Indica-se a leitura da obra, que já nasce clássica, Tecnoinvestigação criminal: entre a proteção de dados e a infiltração por software, de Carlos Hélder C. Furtado Mendes (Ed. Juspodivm, 2020).

(3) https://www.nbcnews.com/feature/nbc-out/security-flaws-gay-dating-app-grindr-expose-users-location-data-n858446

(4) O tema foi objeto de decisão recente, pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 51.

professor

{{ pessoas.pessoaActive.title }}

×